Por que Meditar? Matthieu Ricard responde à pergunta inicial de todos

Matthieu Ricard é um monge budista, escritor e fotógrafo que reside no Monastério Shechen, no Nepal. Entre seus livros estão A Arte da Meditação e O Monge e o Filósofo, um diálogo com o pai dele, o filósofo francês Jean François Revel. Este artigo foi adaptado de seu novo livro: Why Meditate: Working with Thoughts and Emotions (Por que Meditar?: trabalhando com os pensamentos e as emoções).

Volte-se para si mesmo, com franqueza. Você está em que momento da sua vida? Até aqui, quais têm sido as suas prioridades e o que você pretende fazer com o tempo que te resta?

Somos uma mistura de luz e sombra, de qualidades boas e de defeitos. Somos realmente o melhor que podemos ser? Temos que continuar a ser do jeito que somos agora? Se não, o que podemos fazer para melhorar? Essas são questões que merecem ser levantadas, sobretudo, se acreditarmos que mudanças são possíveis e desejáveis.

No nosso mundo moderno, somos consumidos, desde a manhã até a noite, por atividades intermináveis. Não nos resta muito tempo ou energia para refletir sobre as causas básicas da nossa felicidade ou do nosso sofrimento. A gente supõe, mais ou menos conscientemente, que se fizermos mais atividades, teremos experiências mais intensas, e, consequentemente, vai diminuir nossa sensação de insatisfação. Mas a verdade é que muitos de nós continuam a se sentir decepcionados e frustrados com o nosso estilo de vida contemporâneo.


O objetivo da meditação é transformar a mente. Ela não está associada a nenhuma religião específica. Nós todos temos uma mente e todos podemos trabalhar com ela.

É POSSÍVEL MUDAR?

A pergunta adequada não é se mudar é desejável; é se mudar é ou não é possível. Algumas pessoas pensam que não conseguem mudar porque as emoções aflitivas que elas têm estão associadas tão intimamente com a mente delas que seria impossível se livrar dessas emoções sem, ao mesmo tempo, destruir uma parte de quem elas são.

É verdade que, em geral, o caráter de uma pessoa não muda muito ao longo de sua vida. Se pudéssemos estudar um determinado grupo de pessoas com uma frequência de alguns anos, dificilmente descobriríamos que aqueles que eram nervosos tornaram-se pacientes; que aqueles que eram estressados encontraram paz interior; ou que aqueles que eram arrogantes aprenderam a ser humildes. Mas, por mais raras que sejam essas mudanças, algumas pessoas mudam, o que demonstra que mudar é possível. O ponto é que nossas características negativas tendem a perdurar se não fizermos nada para mudar o status quo. Mudança alguma acontece se deixarmos nossas tendências habituais e nossos padrões automáticos de pensamentos se perpetuarem ou até mesmo se reforçarem, pensamento após pensamento, dia após dia, ano após ano. Mas podemos confrontar essas tendências e padrões.

Agressividade, cobiça, ciúme e outros venenos mentais são indiscutivelmente partes de nós, mas seriam elas partes intrínsecas e inalienáveis? Não necessariamente. Por exemplo, um copo de água pode conter cianureto, que poderia nos matar na hora. Mas essa mesma água poderia também ser misturada com um remédio. Nos dois casos, H2O, a fórmula química para água, permanece intacta; a água em si não é nem venenosa nem medicinal. Os diferentes estágios da água são temporários e dependem das circunstâncias. Do mesmo modo, nossas emoções, temperamentos e caraterísticas ruins são apenas elementos temporários e circunstanciais da nossa natureza.

UM ASPECTO FUNDAMENTAL DA CONSCIÊNCIA

Essa qualidade temporária e circunstancial se torna clara para nós quando nos damos conta de que a qualidade primária da consciência é simplesmente a de conhecer. Assim como a água no exemplo anterior, conhecer ou ter consciência, em si, não é nem bom nem ruim. Se olharmos de fora para essa corrente transitória de pensamentos e emoções que passam em nossas mentes dia e noite, esse aspecto fundamental da consciência estará sempre lá. A consciência nos possibilita perceber fenômenos de todo tipo. O budismo caracteriza essa qualidade cognitiva básica da mente como luminosa porque ela ilumina tanto o mundo externo, mediante as percepções, quanto o mundo interno das sensações, emoções, raciocínio, memória, esperança e medo.

Embora essa faculdade cognitiva esteja na base de todos os eventos mentais, ela não é em si afetada por nenhum deles. Um raio de luz pode brilhar sobre uma face desfigurada pelo ódio ou sobre uma face sorridente; pode brilhar sobre uma joia ou sobre uma pilha de lixo; mas a luz, em si, não é nem má nem amorosa, nem suja nem limpa. Entender que a natureza essencial da consciência é neutra nos mostra que é possível mudar nosso universo mental. Podemos transformar o conteúdo dos nossos pensamentos e experiências. O plano de fundo neutro e luminoso da nossa consciência nos proporciona o espaço de que necessitamos para observar os eventos mentais em vez de ficar a mercê deles. Logo, temos também o espaço de que necessitamos para criar as condições necessárias para transformar esses eventos mentais.

QUERER NÃO É PODER

Não temos muita escolha sobre o que já somos, mas podemos querer mudar. Esse tipo de aspiração dá um sentido de direção para a mente. Mas querer não é o bastante. Precisamos achar um jeito de concretizar esse desejo.

Ninguém acha estranho que levemos anos para aprender a andar, para ler e escrever, ou para desenvolver habilidades profissionais. Gastamos horas fazendo exercícios físicos para deixar os nossos corpos em forma. Às vezes, despendemos uma energia física tremenda pedalando em uma bicicleta estática. Para nos mantermos firmes nessas tarefas, é necessário que haja um mínimo de interesse ou de entusiasmo. E esse interesse surge porque acreditamos que o nosso esforço vai nos trazer benefícios no longo prazo.

Essa mesma lógica se aplica quando trabalhamos com a mente. Mas, quando se trata da mente, achamos que é possível mudá-la sem esforço algum. Queremos mudá-la simplesmente porque assim é a nossa vontade. E isso faz tanto sentido quanto querer aprender a tocar uma sonata de Mozart tentando improvisar alguma coisa no piano de vez em quando.

Envidamos muitos esforços para melhorar as condições externas das nossas vidas, mas no fim das contas é sempre a mente que vai criar a experiência que temos no mundo e vai traduzir essa experiência em bem-estar ou em sofrimento.

Se transformarmos o modo como percebemos as coisas, transformaremos a qualidade das nossas vidas. É esse tipo de transformação que ocorre por meio desse treinamento da mente, também conhecido por meditação.

O QUE É A MEDITAÇÃO?

A meditação é a prática que torna possível o cultivo e o desenvolvimento de certas qualidades positivas básicas dos seres humanos; da mesma forma que outros tipos de treinamentos nos possibilitam tocar um instrumento musical ou nos possibilitam desenvolver uma outra habilidade.

Muitas palavras asiáticas são traduzidas como “meditação”, como bhavana, do sânscrito, que significa “cultivar”; e a palavra tibetana equivalente gom, que significa “familiarizar-se”. A meditação nos ajuda a nos familiarizarmos com uma maneira clara e precisa de ver as coisas e nos ajuda a cultivar qualidades íntegras, que permanecem em estado latente em nosso interior até que façamos um esforço para desenvolvê-las.

Então, vamos começar nos fazendo as seguintes perguntas: “O que quero da vida realmente? Estou satisfeito em simplesmente continuar levando a vida desse modo improvisado dia após dia? Vou continuar ignorando essa sensação meio vaga de insatisfação que no fundo eu sempre sinto quando desejo bem-estar e realização?”. Nós nos acostumamos a pensar que nossas limitações são inevitáveis e que temos que aceitar as dificuldades que elas nos trazem ao longo de nossas vidas. Acreditamos que esses aspectos disfuncionais de nós mesmos são fatos estabelecidos, sem nos darmos conta de que é possível quebrar esse círculo vicioso de padrões cansativos de comportamento.

No contexto budista, os textos tradicionais afirmam que todo ser tem o potencial para se iluminar, da mesma forma como toda semente de gergelim contém azeite de gergelim. Apesar disso, nós ficamos vagando na confusão como – para usar outra analogia tradicional – vaga um mendigo que é simultaneamente pobre e também rico porque não sabe que existe um tesouro enterrado debaixo do chão da sua barraca. O objetivo do caminho budista é se apropriar dessa nossa riqueza que passa despercebida, a qual pode incutir nossas vidas com o mais profundo significado.

TREINANDO A MENTE

O objeto da meditação é a mente. Nesse momento, ela é simultaneamente confusa, agitada, rebelde e sujeita a inúmeros padrões condicionados e automáticos. O objetivo da meditação não é desligar a mente ou anestesiá-la, mas sim torná-la livre, lúcida e equilibrada.

De acordo com o budismo, a mente não é uma entidade; é uma corrente dinâmica de experiências; é uma sucessão de momentos de consciência. Essas experiências são frequentemente marcadas por confusão e sofrimento, mas também podemos vivê-las em um estado mais amplo de claridade e de liberdade interior.

Nós todos sabemos bem – como lembra o mestre tibetano contemporâneo Jigme Khyentse Rinpoche – que “não precisamos treinar nossas mentes para aprimorar nossa capacidade de ficarmos chateados ou com ciúmes. Não precisamos de um acelerador de raiva ou um amplificador de orgulho”. Pelo contrário, treinar a mente é crucial se quisermos refinar e aguçar nossa atenção; desenvolver equilíbrio emocional, paz interior e sabedoria; e cultivar uma dedicação ao bem-estar dos outros. Nós temos dentro de nós o potencial para desenvolver essas qualidades, mas elas não vão se desenvolver por si mesmas ou simplesmente porque queremos assim. Elas demandam treinamento. E, como já mencionei, todo treinamento requer perseverança e entusiasmo. Ninguém aprende a esquiar praticando um ou dois minutos por mês.

REFINANDO A ATENÇÃO E A ATENÇÃO PLENA

Galileu descobriu os anéis de Saturno depois de idealizar um telescópio suficientemente reluzente e poderoso e montá-lo sobre um suporte estável. A descoberta dele não teria sido possível se o instrumento utilizado tivesse sido inadequado ou se ele o tivesse apoiado em uma mão tremendo. Da mesma forma, se quisermos observar os mecanismos mais sutis do funcionamento da nossa mente e ter alguma influência sobre eles, sem dúvida, temos que refinar nossa capacidade de olharmos para dentro de nós mesmos. Para fazermos isso, nossa atenção deve estar bastante afiada para que ela se torne clara e estável. Assim, será possível observar como a mente funciona e percebe o mundo, e também será possível compreender a maneira como os pensamentos se multiplicam por associação. Por fim, seremos capazes de continuar refinando a percepção da mente até que alcancemos o ponto em que seja possível ver o estado mais fundamental da nossa consciência: um estado perfeitamente desperto e lúcido que está sempre presente, até mesmo na ausência da usual corrente de pensamentos.

O QUE NÃO É MEDITAÇÃO

Às vezes, praticantes de meditação são acusados de serem muito centrados em si mesmos ou de mergulharem em uma introspecção egocêntrica e deixarem de se preocupar com os demais. Mas não podemos considerar egoísta um processo cujo objetivo é desenraizar a obsessão em relação ao nosso ego e cultivar o altruísmo. Seria como acusar um estudante de medicina de passar anos estudando antes de exercer a medicina.

Há um número razoável de clichês circulando acerca da meditação. É bom deixar claro logo que meditação não é uma tentativa de criar uma mente limpa por meio do bloqueio dos pensamentos – que, aliás, é impossível. Também não é deixar a mente em um processo infinito de elucubração, tentando analisar o passado e prever o futuro. Tampouco se trata de um simples processo de relaxamento no qual os conflitos internos são temporariamente suspensos em um estado vago e amorfo de consciência. Não há muito sentido em relaxar em um estado de tumulto interno. Há, de fato, certo relaxamento na meditação, mas isso está associado ao alívio que temos quando nos libertamos das nossas esperanças e medos, dos apegos e dos caprichos do ego que nunca deixam de alimentar nossos conflitos internos.

MAESTRIA QUE NOS LIBERTA

A forma como lidamos com os pensamentos na meditação não é bloqueando-os ou alimentando-os indefinidamente; é deixando que eles surjam e se dissolvam por si mesmos no campo da Atenção Plena. Dessa maneira, eles não se apoderam da nossa mente. Além disso, a meditação consiste em cultivar um jeito de ser que não está sujeito aos padrões habituais de pensamento. Frequentemente, inicia-se com análises, continuando depois com contemplações e transformação interna. Ser livre significa ser senhor de si mesmo. Não se trata de sair fazendo a primeira coisa que surge na cabeça; trata-se de nos libertarmos das amarras e das aflições que dominam e obscurecem nossas mentes. Trata-se de assumir a responsabilidade pela nossa própria vida, em vez de deixá-la à sorte das tendências criadas pelo hábito e pela confusão mental. Em vez de largar o leme e simplesmente permitir que o barco fique à deriva, ao sabor do vento, a liberdade significa estabelecer o curso em direção a um destino escolhido – destino esse que sabemos ser o mais desejável para nós e para os outros.

O CORAÇÃO DA REALIDADE

Meditar não é, como pensam alguns, uma maneira de fugir da realidade. Ao contrário, o objetivo da meditação é nos fazer ver a realidade como ela é – bem no meio do desenrolar da nossa experiência –, para desmascarar as causas profundas do nosso sofrimento e para dissipar a nossa confusão mental. Desenvolvemos um tipo de compreensão que surge a partir de uma visão mais clara da realidade. Para alcançar esse entendimento, meditamos, por exemplo, acerca da interdependência de todos os fenômenos; acerca do caráter transitório deles; e acerca da inexistência de um ego que seja como uma entidade sólida e interdependente.

As meditações sobre esses temas são baseadas na experiência de gerações de praticantes de meditação que dedicaram suas vidas a observar os padrões automáticos e mecânicos de pensamento e a observar a natureza da consciência. Eles então passaram a ensinar métodos empíricos para desenvolver clareza mental, vigilância, liberdade interior, amor altruístico e compaixão. Contudo, não podemos simplesmente confiar na palavra deles para nos libertamos do sofrimento. Temos que descobrir por nós mesmos se os métodos que essas pessoas sábias ensinaram têm valor e validar por nós mesmos a conclusão a que eles chegaram. Esse não é um processo puramente intelectual. Um amplo estudo da nossa própria experiência é necessário para redescobrirmos as respostas que eles alcançaram e integrá-las em nós mesmos em um nível profundo. Esse processo requer determinação, entusiasmo e perseverança. É necessário sentir o que Shantideva chama de “alegria em formas virtuosas”.

Assim, começamos a observar e a compreender como os pensamentos se multiplicam associando-se entre si e como criam todo um mundo de emoções, de alegria e sofrimento. Dessa forma, penetramos na tela dos pensamentos e temos um vislumbre sobre o componente fundamental da consciência: a faculdade cognitiva primordial da qual surgem todos os pensamentos.

LIBERTANDO A MENTE DE MACACO

Para realizar essa tarefa, é preciso começar acalmando nossa mente turbulenta. Nossa mente se comporta como um macaco que está preso e que, devido a sua agitação, fica cada vez mais emaranhado em suas amarras.

Do turbilhão dos nossos pensamentos, primeiro surgem as emoções, e depois, comportamentos e estados de espírito, e, por fim, hábitos e características da personalidade. O que surge espontaneamente não necessariamente produz bons resultados, da mesma forma que jogar sementes ao vento não necessariamente resulta em boas safras. Portanto, temos que nos comportar como bons fazendeiros que preparam o campo antes de plantar as sementes. Para nós, isso significa que a tarefa mais importante é alcançar a liberdade por meio do domínio da mente.

Se considerarmos que o benefício potencial da meditação é nos proporcionar uma nova experiência do mundo a cada momento de nossas vidas, então não parece exagero passar pelo menos vinte minutos por dia conhecendo melhor nossa mente e treinando-a para esse tipo de abertura. O fruto da meditação pode ser descrito como uma forma ideal de ser ou como uma felicidade genuína. Essa felicidade verdadeira e duradoura tem uma sensação profunda de haver atingido ao máximo o potencial para sabedoria e realização que temos em nosso interior. Trabalhar para alcançar esse tipo de realização é uma aventura que vale a pena viver.

Fonte: http://tibethouse.org.br/por-que-meditar-matthieu-ricard-responde-a-pergunta-inicial-de-todos/

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