Nicodemos e a Reencarnação

“E havia entre os fariseus um homem, chamado Nicodemos, príncipe dos judeus. – Este foi ter de noite com Jesus, e disse-lhe: Rabi, bem sabemos que és Mestre, vindo de Deus; porque ninguém pode fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não for com ele. – “Jesus respondeu, e disse-lhe: Na verdade, na verdade te digo que aquele que não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus.” João 3: 1 – 15 [1]

Nicodemos fazia parte da elite sacerdotal do sinédrio que era uma assembléia de juízes judeus que legislavam sobre o povo. Devido a sua alta posição, o sacerdote já em avançada idade, resolveu visitar o polêmico rabi durante a noite justamente para não ser visto e sofrer acusações de compactuar com heresias.

Pelo texto, percebemos que o sacerdote simpatizava com os ensinos de Jesus e é provável que o considerasse um possível candidato ao messias tão esperado. Desse modo, a finalidade da visita de Nicodemos, consistia em saber do pretendente ao messianato, quais as suas pretensões e, se a avaliação fosse positiva, quando o reino de Deus finalmente chegaria e os Judeus ficariam definitivamente livres da opressão romana.

A esperança do restabelecimento da antiga glória do reinado Davídico, através de um messias da casa de Davi era compartilhada por todos os Judeus. Entretanto, as atitudes do jovem rabi fugiam ao padrão messiânico esperado e apesar de reconhecer em Jesus um enviado de Deus, ficava em dúvida se ele era realmente aquele que libertaria o seu povo. Assim, movido por essas indagações, resolveu conversar pessoalmente a fim de obter respostas mais precisas.

Jesus, que já conhecia previamente as dúvidas interiores do ancião, logo que Nicodemos terminou de expressar o seu reconhecimento, antecipou-se e esclareceu de maneira sintética e direta: “Na verdade, na verdade te digo que aquele que não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus”. Em outras palavras, Jesus estava afirmando que o reino de Deus ainda não poderia se materializar na terra, enquanto a humanidade não se aperfeiçoar moral e intelectualmente pelo cadinho de muitas vidas.

Nicodemos, pego de surpresa, imediatamente relacionou a frase de Jesus a uma das muitas crenças que existam no seio das camadas populares. Muitos naquela época acreditavam que o homem poderia renascer muitas vezes, mas, logicamente que nem todos eram concordes sobre esse assunto que era visto pela maioria da elite como uma superstição. Porém, Nicodemos deve ter se perguntado se os rumores dessa doutrina não seriam verdadeiros, no entanto, como esse fenômeno poderia acontecer? Confuso, ele prontamente pergunta: “Como pode um homem nascer, sendo velho? Pode, porventura, tornar a entrar no ventre de sua mãe, e nascer?”.

Jesus percebeu que o seu interlocutor compreendeu a sua afirmação em parte, talvez por conhecer o assunto de maneira muito superficial, o que é injustificável para alguém da sua estirpe, cujos conhecimentos deveriam abranger profundamente todos os temas religiosos que fervilhavam em meio ao seu povo e não somente o que concernia à tradição sacerdotal.

Desse modo, Jesus volta a reafirmar o que dissera antes, utilizando-se de palavras diferentes que, para a mente de um príncipe religioso de Jerusalém, poderia responder definitivamente a questão: “Na verdade, na verdade te digo que aquele que não nascer da água e do espírito, não pode entrar no reino de Deus”.

À primeira vista, as palavras de Jesus parecem referir-se ao batismo pela água segundo a opinião dos representantes das religiões tradicionais, Já que naquela época, o rito batismal estava sendo ministrado por João batista. Entretanto, devemos ter em mente que Nicodemos era um doutor da Lei e como tal, estava a par dos ritos judaicos. A purificação através de lavatórios era prática ritual corriqueira no Judaísmo, feita por meio de aspersões e também imersões [2] em rios ou em tanques específicos [3]. Além disso, João Batista era, nesse momento, bastante conhecido e temido pelo sacerdócio, por realizar o lavatório judaico indiscriminadamente, desafiando o legalismo estabelecido pelo sinédrio [4].

Assim sendo, para compreender essa reafirmação de Jesus é preciso se colocar do ponto de vista das crenças mitológicas daquela época. Segundo a mitologia hebraica, a água era a matéria primordial, a fonte geradora de todas as coisas, pois ela estava no princípio da criação e foi com ela que Deus criou o mundo e os seres, como vemos em Gênesis 1:1-22 e em 2 Pedro 3:5: “Eles voluntariamente ignoram isto, que pela palavra de Deus já desde a antiguidade existiram os céus, e a terra, que foi tirada da água e no meio da água subsiste”.

Portanto, a água também era na língua hebraica sinônimo de matéria, de corpo físico, de vida material. No texto original em grego está escrito mais precisamente “nascer de água e espírito” não nascer “da água e do Espírito”, [5] ou seja, é o nascer envolvido em líquido amniótico que é constituído de apenas água, proveniente da própria mãe. O espírito renasce em um novo corpo biológico que se desenvolve em ambiente aquático. Não era difícil aos antigos relacionarem o meio aquoso ao corpo material, visto que, quando a bolsa amniótica se rompe por ocasião no nascimento, todo o líquido é expulso.

Então, nascer da água (corpo) e do espírito é reencarnar. O que Jesus queria dizer a Nicodemos era: Não é o mesmo corpo que retorna ao ventre materno, mas, é o espírito que necessita renascer com outro corpo para poder herdar o reino de Deus.

E com a finalidade de levar um esclarecimento maior ao conflito mental do sacerdote judeu continua: “O que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do Espírito é espírito”. O nascido da carne é o nascimento natural de um novo corpo biológico enquanto que o nascido do espírito é o ser espiritual, que só pode ser criação direta de Deus que é Espírito.

“Não te maravilhes de te ter dito: Necessário vos é nascer de novo”.

É somente através do renascimento na carne, que o espírito, por meio do acúmulo de diversas experiências, que somente o ambiente material pode proporcionar, vai aos poucos abandonando o homem velho (as imperfeições de vidas pretéritas) e adquirindo novas diretrizes intelecto-morais, se renovando interiormente na sua jornada rumo à concretização do reino de Deus em si mesmo, isto é, à perfeição.

Alguns irmãos do cristianismo tradicional, ainda com a finalidade de contestar a interpretação reencarnacionista, creditando o texto ao batismo da água, prefere traduzir “de novo” como “do alto”, pois a expressão grega “anóthem” tem esses dois significados. Todavia, devemos considerar os seguintes pontos:

1 – Nicodemos compreendeu Anóthem na primeira fala de Jesus como “de novo”. Daí se reportar a ideia de renascimento corporal.

2 – No segundo momento, quando Jesus fala os vocábulos “água e Espírito”, e novamente reconduz a conversa para anóthem, não houve em ocasião alguma qualquer menção a palavra batismo ou ao ato ritual de batizar nas águas. Como vimos Nicodemos não teria nenhuma dificuldade de discernir acerca do batismo, que conhecia. Fica evidente que ele ainda não reconheceu anóthem como “do alto”, mas, como “de novo” porque esse era o sentido real que Jesus dava à palavra. O ancião tentava apreender sem sucesso as consequências do processo reencarnatório.

“O vento assopra onde quer, e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai; assim é todo aquele que é nascido do Espírito”.

O vento ou o espírito assopra onde quer, significa que ele renasce no ambiente necessário ao seu aprendizado, ninguém sabe quem ele foi e qual será o seu destino. Nem ele mesmo o sabe, mas traz no seu íntimo o resultado de suas conquistas de forma intuitiva, quer dizer, a voz do passado que ele não sabe de onde vem e nem para onde vai lhe levar no porvir, visto que tudo depende de como utilizará o seu livre arbítrio.

Se o espírito fosse criado no momento do nascimento se saberia de onde ele veio. Se não houvesse reencarnação, como explicar os conhecimentos que muitas crianças têm sem nunca os terem estudado? Como explicar as vocações e tendências inatas se, segundo a opinião de algumas pessoas, a criança nasce como uma folha em branco?

Como Jesus poderia ter instituído nesses versículos, o batismo da água como condição essencial para se herdar o Reino de Deus se, em conhecendo a psique humana, ele sabia que muitos dos que seriam batizados não permaneceriam sem se desviarem e que o próprio rito joanino se tornaria em algo banal. Quantos hoje, que já passaram pelo batismo, seja o infantil ou adulto, conseguem durante a sua vida uma vivencia plena do evangelho? Quantas pessoas não batizadas demonstram melhor comportamento do que muitos que passaram pelas águas?

Pode-se argumentar que o batismo da água no seu significado simbólico, representa o esforço do individuo na busca da sua transformação moral. Essa é precisamente a prova de que o ato material de batizar em si não transforma, mas, é a atitude interior sincera de renovação, e são poucos os que vivenciam esse renascer interno verdadeiramente e o conservam ao longo do tempo. Ora, se a atitude interna é o essencial, pois somente desse modo podemos nos ligar a Deus, o rito externo torna-se dispensável, podendo-se optar por ele ou não.

Desse modo, Jesus não poderia relacionar um ritual externo e simbólico a um acontecimento de tamanha importância para a alma, como é a entrada no Reino de Deus.

Por isso, reencarnar é o destino de todo Espírito que ainda não atingiu a perfeição. Os vários nascimentos possibilitam a individualidade espiritual, ir aos poucos, despojando-se completamente do que é desnecessário para o sua vida imortal, não ficando enclausurado numa beatitude egoísta ou acreditando-se mais privilegiado do que aqueles que não compartilham de suas crenças, mas trabalhando em benéfico dos que ficaram na retaguarda, pois nenhuma das ovelhas do Senhor se perderá.

“Nicodemos respondeu, e disse-lhe: Como pode ser isso?”

“Jesus respondeu, e disse-lhe: Tu és mestre de Israel, e não sabes isto?”

Nicodemos mesmo sendo um intelectual de Jerusalém, naquele momento, parece que ainda não estava preparado para a verdade de um reino divino puramente espiritual e as consequências morais advindas do processo reencarnatório: transformação interior e a adesão consciente e definitiva ao amor incondicional. Embora essa previsão já fizesse parte das escrituras antigas (Jeremias 31:33-34; Isaías 2:4; Isaías 26:19; Miquéias 4:1-4; Ezequiel 39:9; Isaías 11:6-9; Ezequiel 36:29-30). E novamente Jesus se espanta com a falta de entendimento do príncipe do sinédrio. O velho rabino tinha a mente ainda envolvida pelo estereótipo de um messias guerreiro, de um soberano mítico nos moldes do rei Davi.

“Na verdade, na verdade te digo que nós dizemos o que sabemos, e testificamos o que vimos; e não aceitais o nosso testemunho”.

“Se vos falei de coisas terrestres, e não crestes como crereis, se vos falar das celestiais?”

“Ora, ninguém subiu ao céu, senão o que desceu do céu, o Filho do homem, que está no céu”.

“E, como Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do homem seja levantado;”

“Para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”.

A adesão ao reino de Deus não acontece de maneira imediata, cada indivíduo tem o seu momento, uns demoram mais que outros, e nisto se encontra bondade e misericórdia infinita de Deus através da reencarnação, deixando sempre a esperança de renovação ao espírito temporariamente envolto pelas imperfeições que o escraviza.

Mas nem todos, a exemplo de Nicodemos, poderiam compreender esse conceito evolutivo do espírito, apreciação que só viria a fazer sentido no futuro. Por enquanto, o simples fato de crer-se um privilegiado por seguir a Boa Nova já atendia aos anseios da maioria. As questões mais complexas viriam com o tempo e a evolução das ideias.

Assim, do mesmo modo que Moisés foi obrigado a levantar uma imagem de serpente, mesmo tendo se posicionado contra a idolatria, por causa da incredulidade dos hebreus. Jesus também teria que, não somente adequar a sua fala à mente dos seus contemporâneos, como ainda apresentar-se como o modelo de amor e de superação do sofrimento, por meio da cruz, na esperança de um mundo melhor e de um reino de paz no porvir. Isso é o que todos nós, independente da religião que professamos, também esperamos, é o que nos une como irmãos de ideal: a realização do reino de Deus em nós mesmos.

Autor: Jefferson Moura de Lemos

[1] O Novo Testamento, João Ferreira de Almeida (Edição Corrigida e Revista). Os Gideões Internacionais no Brasil.

[2] Aspersões: Números 8:7; Números 19:17; Ezequiel 36.25; Salmo 51: 1-7

Imersões (Tevilah): Levítico 15:13 -16; 2 Reis 5:10 – 14; Levítico 11: 31-32

[3] Mikveh – Tanques construídos para imersão e purificação. Geralmente se enchiam com águas recolhidas das chuvas (Levítico 11:36)

[4] João 1:25. Os sacerdotes e levitas reconheciam o batismo de João como um ritual judeu a ponto de questionarem com que autoridade ele fazia aquilo, já que não se considerava nem profeta, nem messias, nem Elias.

[5] ek (de) ydatos (água) kai (e) pneumatos (espírito).

 

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