O que estamos fazendo das nossas viagens? Um caminho de reconhecimento? Uma trilha para o novo? Ou um trajeto em que seguimos uma rota virtual para chegar o quanto antes ao destino, seja ele qual for? O filósofo Mario Sergio Cortella, professor da PUC-SP e ex-monge carmelita descalço, diz que estamos perdendo o GPS de nós mesmos ao nos preocuparmos mais com o objetivo do que com a jornada. Quando desprezamos a paisagem, deixamos de ampliar nosso repertório de imagens e a capacidade de criar. Enfim, de viver. “Nossa realidade circunstante virou uma maquete virtual.”
Houve um tempo em que o caminho importava: “Caminhante, são suas pegadas / O caminho e nada mais”, nos versos célebres do poeta sevilhano Antonio Machado, em Campos de Castilla, de 1912. “Caminhante, não há caminho / Se faz o caminho ao andar.”
Houve um tempo em que o caminho importava: “Caminhante, são suas pegadas / O caminho e nada mais”, nos versos célebres do poeta sevilhano Antonio Machado, em Campos de Castilla, de 1912. “Caminhante, não há caminho / Se faz o caminho ao andar.”
Hoje, quem liga? Queremos chegar. Rápido. Sem olhar para os lados. A vista vai da estrada ao celular, segue o percurso do Waze (roxo) ou do Google Maps (verde). Tanto faz os matizes de dia e noite, de floresta ou deserto. O GPS sabe aonde vai. Em meio a paisagens cada vez mais desconhecidas, melhor mesmo prosseguir pela rota destacada. Como disse essa semana o criador do Waze, Uri Levine, com involuntária profundidade, “as pessoas não pensam mais por onde estão indo”.
Vivemos um momento de obscurecimento da paisagem, destaca o filósofo Mario Sergio Cortella, professor da PUC-SP e autor de livros de filosofia e educação, entre eles Não se Desespere! Provocações Filosóficas (Vozes). “Ao ignorar os percursos, perdemos a possibilidade de ampliar nosso universo de visões e imagens.” Vale para passeios e para o dia a dia. “É um reflexo da instrumentalização do nosso tempo. Estamos sempre ocupados com metas e objetivos e não temos espaço para distração, para aproveitar as jornadas que, no fim das contas, são a nossa vida”, disse Cortella, discípulo de Paulo Freire, que o descrevia como “um dos poucos filósofos brasileiros que pensam o novo”.
Ex-secretário de Cultura de São Paulo (gestão Erundina) e ex-monge carmelita descalço (uma ordem viajante), o filósofo analisou nossas jornadas em tempos de Waze. “Toda viagem para fora é também uma viagem para dentro. Em nossos caminhos não podemos ficarmos submissos à tecnologia. Viajar, como viver, é emoção. E, se deixamos de prestar atenção no que mexe conosco, o que resta é mera rotina.” Dica a ser anotada, em estranhos dias de caminhantes que não sabem dizer por onde andaram. Ou pior: que não têm mais a curiosidade de saber.
O criador do Waze disse que as pessoas “não pensam mais por onde vão”. O caminho perdeu a importância?
Estamos vivendo um momento de obscurecimento da
paisagem. Durante muito tempo, olhar para fora, pela janela do carro,
era decisivo nas viagens que fazíamos. Seja qual fosse. Num carro, trem.
Até num navio, ter escotilha sempre foi um grande atrativo. E agora a
gente vive um instante de não precisar ver para poder chegar, nem
conseguir reconhecer a paisagem para se localizar. Isso é novidade. Nas
viagens que fiz quando criança, minha mãe, sabiamente, dizia que só a
viagem já era um passeio. Essa expressão tinha um sentido forte: o
traslado já era uma diversão. O conceito de distração, portanto, mudou.
Antes a paisagem distraía, descansava, repousava. Acalmava o trajeto.
Houve uma ressignificação da ideia de distração.
Nos distraímos menos em nossas viagens hoje?
A distração serenava o tempo, o desconforto
eventual, a ansiedade da chegada. Hoje o efeito é contrário. A
tecnologia é distrativa no sentido de tirar a atenção, fazer com que eu
mantenha o meu olhar no virtual. Perdemos a possibilidade da fruição, de
ampliar nosso universo de paisagens, visões, imagens. Há uma perda de
nossa capacidade de imaginação, de observação. Ao olhar para o mar ao
longe, para as nuvens, para a velocidade do trem ou do carro, isso tudo
compõe um universo circunstante que foi explodido e substituído por
outro, indiferente. É a quase transformação da nossa realidade
circunstante numa maquete virtual. E o que ganhamos? Ao ficarmos fixados
no Waze ou no Google Maps, ganhamos algo extremamente arriscado, que é a
monotonia. Como eles exigem um olhar contínuo, dada a capilaridade das
estradas, a monotonia se torna enfadonha. A viagem fica mais prática,
mas muito mais cansativa.
Então a imaginação sai prejudicada?
Exatamente. Porque deixamos de ampliar nosso
repertório de imagens. O percurso acaba ficando desnaturalizado. Há uma
desimportância do externo, o caminho já não importa, e isso leva a um
encapsulamento. Quando falo em importar é no sentido de “portar para
dentro”: aquilo que trazemos para dentro de nós. E, nesse caso, estamos
deixando de importar a paisagem. Ela deixou de ser importante e agora
tem de ser ignorada, porque atrapalha. Nos distrai do GPS. Se eu olhar
para fora, corro o risco de me perder. Quando deveria ser o contrário:
observar a paisagem, olhar para fora, deveria ajudar a me encontrar.
João e Maria jamais se perderiam na floresta com o Waze. Mas também
nunca iriam notá-la. E a história de Teseu só é bonita porque ele
prestou atenção no labirinto, e não somente no fio. Há uma descoberta.
Ali é que ele vira o Teseu. Vale para as viagens e também para nosso dia
a dia. Lembro-me da ideia clássica de Ortega y Gasset, filósofo
espanhol: eu sou eu e mais a minha circunstância. Eu não sou eu puro.
Sou eu e mais o que está à minha volta. Portanto, uma visão que se
alarga para o exterior. E nós somos um ser para fora. Por isso é que nós
temos existência. Existir: “ser para fora”. Olhar para dentro é
importante, sempre. Mas o tipo de olhar para dentro a que algumas
tecnologias nos induzem é redução mental.
Isso começou com esses aplicativos?
É mais antigo, essa quase anulação do que nos
rodeia se iniciou na área de armamento militar, quando começamos a ter,
na Guerra do Golfo, a utilização de ataques de bombas em que só se
enxergava o “x” no alvo e depois o sinal da explosão. Não se via o
prédio cair, a paisagem não existia. É como um game. A pessoa se conduz
numa câmara escura, como se tivesse os olhos lateralmente tapados. Serve
para o trânsito, o trem, o avião. Um dos prazeres de voar era olhar a
paisagem, as nuvens, era o que distraía. Hoje, ao contrário. O estímulo é
para que a pessoa olhe um mapinha na frente dela. É uma
desnaturalização da própria paisagem. Nós retiramos o que o Max Weber
chamaria de encantamento. É o desencantamento do real e, portanto, o
caminho se tornou só o meio para o objetivo final. O repertório cultural
também muda. É curioso imaginar, por exemplo, expressões como “terra à
vista”, dita nas navegações. Fosse hoje, os navegadores não olhariam
para o horizonte. É o que fazemos atualmente: olhamos o tempo todo para o
virtual, sem notar o horizonte real. Ao contrário, ele é indiferente.
Como essa visão afeta nosso dia a dia?
Existe uma instrumentalização do nosso tempo
para impedir que sejamos capazes do ócio. O que é um passeio, de fato?
Aquilo que o francês chama de promenade. Vou dar uma volta. É você não
ter rumo, não precisar saber aonde vai. Ócio não é vagabundagem. É não
ser obrigado a uma ocupação. Preso não tem ócio. Desocupado não tem
ócio. Ócio é quando você tem liberdade para o uso do seu tempo naquilo
que deseje. Antigamente, a expressão de quem saía por aí de maneira
livre era vagamundo – que em grego antigo, aliás, se diz planetes
e origina a palavra planeta, astro que fica dando voltas. Mas depois a
palavra virou vagabundo e ganhou conotação negativa. Na sociedade
capitalista, no mundo dos últimos 500 anos, dentro da ética protestante,
a ideia de quem saía por aí sem eira nem beira se tornou absolutamente
reprovável. Só o trabalho salva. Só o trabalho dignifica. Aliás, como
escreveram os nazistas nos campos de concentração, só o trabalho
liberta. Certo? Há uma objetivação extremada do tempo livre hoje. A tal
ponto que ficar desocupado é quase uma insuportabilidade. O resultado
são crises de criatividade. Porque o tédio é absolutamente criativo.
Você inventa coisas porque não tem o que fazer. E a ausência hoje de
tédio, porque você fica o tempo todo ocupado com algo, resulta numa vida
que precisa ter meta e objetivo o tempo todo. Como se fosse uma
carreira. Despreza-se que a arte seria impossível com a ocupação
contínua. Só existe arte, filosofia, por conta da desocupação.
O que buscamos ao fazer uma viagem?
Michelangelo dizia: todo pintor pinta a si
mesmo. É evidente que quando eu viajo quero me conhecer naquilo que
estou conhecendo. Por isso toda viagem é um reconhecimento. Eu sou uma
subjetividade, você é uma subjetividade. Para eu me saber como sou,
preciso me colocar para fora de mim. Isto é, eu preciso objetivar minha
subjetividade. Essa objetivação de minha subjetividade é muito
favorecida por uma viagem. E, numa viagem, eu sou o que eu sou e sei o
que sou quando procuro um lugar para ir. Quando aprecio ou recuso uma
determinada forma de paisagem, quando vou em busca de um alimento; por
isso, toda viagem para fora é uma viagem para dentro. Essa viagem para
dentro não pode me recluir, me prender dentro, que é o que algumas
pessoas estão conseguindo. Os antigos usavam a expressão viagem de
reconhecimento. De território, de terreno, e em princípio essa ideia de
reconhecimento pareceria estranha à medida que nunca se foi lá. Deveria
ser viagem de conhecimento. Mas não é o reconhecimento do lugar, é de
quem está indo. Um novo conhecimento de quem está indo.
Quais vantagens vê nessas tecnologias?
Não sou avesso a elas, absolutamente. Mas
também não sou submisso. A grande vantagem delas é ajudar a chegar logo.
Apesar de não dirigir, claro que sei da ajuda do GPS em viagens a
lugares desconhecidos. Para isso servem bem. Mas será que a finalidade é
apenas chegar? Escrevi um texto anos atrás, meio brincando, sobre a Ilíada,
em que dizia que a grande razão da Guerra de Troia não foi recapturar
Helena, mas, isso sim, o desejo de viajar. Não tenho dúvida de que o que
Ulisses queria fazer era viajar. Porque a finalidade de nossos
deslocamentos é exatamente encontrar o novo. Se estou de fato movido
pelo que é o curioso, vou atrás daquilo que me traga a primeira
impressão. Aquela que me emociona. Viagem é emoção. A expressão emovere,
em latim, significa aquilo que mexe comigo. O que me emociona? O que
mexe comigo? Minha capacidade de vivenciar o que não vivenciei. Claro
que isso tem perigo. Experimentar é vivenciar risco. Mas essa é a graça.
Do contrário é mera rotina monótona. É o que resta, se deixamos de
prestar atenção no que mexe conosco.
Essas tecnologias permitem saber mais das experiências dos outros. Há algum efeito em nossa curiosidade?
Essa antecipação que o mundo virtual permite é a
experimentação falseada, vivenciada por empréstimo. Ela sem dúvida
reduz nosso nível da boa expectativa. Quando você vai a um hotel, já
entra nas opiniões sobre ele, encontra elogios e críticas. Encontra, por
exemplo, que o café da manhã é “limitado”. Obviamente, essa ideia é
muito subjetiva. Depende do que você está habituado no dia a dia. Mas só
a leitura dessa frase já dá um desânimo. O mundo digital diminui um
pouco a ilusão. E a ilusão tem um componente delicioso, que é preparar o
espírito para viver as coisas melhor. Não que a ilusão contínua tenha
importância positiva, ao contrário. Mas a ilusão em relação ao momento,
ao dia de amanhã, ao cotidiano, e também às viagens, às férias, ela dá
um gosto imenso. O mundo da tecnologia abortou parte da nossa ilusão
positiva, que é aquela do desejo gostoso, aquilo que você imagina que
virá e que vai ser esplendoroso. Uma coisa é o aperitivo, que prepara a
degustação. Outra é a leitura da receita, que pode estragar a surpresa.
Por Vitor Hugo Brandalise
Estadão - Aliás - O Estado de S.Paulo
Fonte:http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,partiu-mas-por-que-mesmo,10000006591
Foto:https://www.tagthebird.com/br/tweet/7176479
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