“Então, ajoelhando-se, clamou em alta voz: Senhor, não lhes imputes este pecado.” – Atos, 7:60.
O comportamento de Estêvão, no supremo instante do martírio, constitui um dos mais tocantes episódios da História do Cristianismo, narrado em Atos dos Apóstolos e descrito com rara beleza em Paulo e Estêvão, majestoso romance que Emmanuel nos ofertou, por monumento extraordinário, através da mediunidade ímpar de Francisco Cândido Xavier.
Saulo, que a Visão de Damasco transformaria, oportunamente, em Paulo de Tarso, hercúlea figura dos fastos evangélicos, comandava o massacre do moço grego, no apedrejamento cruel. Cenário: o pátio do Templo.
Saulo que, di-lo a narrativa de Lucas, “assolava a igreja, entrando pelas casas e, arrastando homens e mulheres, encerrava-os no cárcere”.
Há muita literatura, religiosa e não religiosa, aconselhando o perdão, louvando a misericórdia, exaltando o espírito de renúncia, concitando-nos ao amor para com os adversários.
A experiência de Estêvão, contudo, é bem diferente.
É a própria vítima, cruelmente apedrejada de todos os ângulos, que intercede pelos desumanos algozes, junto à Divina Misericórdia: Senhor, não lhes imputes este pecado.
É um jovem, quase uma criança, no verdor dos anos, inflamado de ternura, convertido num monte de carne ensanguentada, o belo rosto dilacerado pela pedras, que sobrepõe o entendimento, que gera o perdão sublime, à sua própria amargura, buscando compreender, na justificação carinhosa, o espírito voluntarioso, embora sincero, de outro moço, noivo de sua irmã, que defende princípios de justiça que a Mensagem do Carpinteiro de Nazaré indicava como respeitáveis, mas contrários à suavidade dos Céus.
As escrituras falavam, realmente, de justiça.
E Saulo, ardoroso defensor da Lei Antiga, fiel servidor de Moisés, assimilara-lhe a interpretação dogmática, nos encontros do Sinédrio, o famoso tribunal israelita, onde a hegemonia da letra, em detrimento do espírito, era uma constante nas longas discussões de rabinos eruditos.
Estêvão, alma sensível, coração meigo e delicado, conhecia, desde as primeiras horas da existência, no lar em Corinto, a mensagem antiga, cultivada com acendrado amor por seus honrados e nobres antepassados; sua alma, todavia, sublimava-se em manifestações de ternura e bondade, de que se opulentavam os ensinos de Jesus.
Na concepção de Saulo, matar aquele moço, irresistível e fascinante em sua humildade, significava extinguir a influência do Carpinteiro Galileu.
Estêvão, no entanto, entendia que se imolar por amor a Jesus, simbolizado na mensagem de eterna ressurreição por Ele trazida, significava a glória maior para um ser humano: oferecer tributo de reconhecimento àquele que viera ao mundo para redimi-lo.
Saulo era, assim, o paladino da Justiça.
Estêvão, o suave jardineiro do Amor.
O primeiro, vinculado à tradição, apegara-se a Moisés, o enérgico legislador hebreu, que se lhe instalara no cérebro privilegiado, incendiando-lhe o coração na arena dos conflitos religiosos.
O segundo, respirava paz interior. Alimentava-se no clima de Amor com que o Mestre aquecera a Terra, desde o primeiro momento da manjedoura singela.
Saulo queria a morte de um homem, em sua expressão corpórea, na ilusão de que se perderiam com ele, no pó da sepultura, eternos conceitos de fraternidade.
Estêvão aceitava o desprendimento físico, a libertação do Espírito, na certeza de que a Imortalidade brilharia em favor dos homens, para todos os tempos, em função dos sublimados ideais que o Divino Emissário, sacrificado à ira humana aos trinta e três anos, deixara na Terra como régio presente do Céu.
A morte de Estêvão, em circunstâncias extremamente bárbaras, enfrentada com um estoicismo que somente mais tarde Paulo viria a entender, marcaria, para sempre, o espírito e o coração daquele moço ardoroso, que, anos depois, amadurecido na luta e no sofrimento, encarnaria a mais notável figura do Cristianismo nascente.
Dos despojos de Estêvão, o jovem mártir, no pátio do Templo, nasceria o indomável Apóstolo da Gentilidade.
A vítima pedir em favor dos algozes?!…
A indagação alojara-se no espírito do moço tarsense, à maneira da semente que fecunda o trato de solo, fendido pelo golpe do lavrador, para se converter depois em frondosa árvore.
Saulo, que durante longo tempo “respirava ameaças e morte contra os discípulos do Senhor”, não resistira à lembrança do pedido de clemência de Estêvão: Senhor, não lhes imputes este pecado.
Suas últimas resistências desmoronar-se-iam na ensolarada estrada conducente a Damasco, quando, enfurecido, buscava “os homens do Caminho”, para infligir-lhes a humilhação e o açoite, o cárcere e a morte.
O gesto de Estêvão, rogando compreensão para Saulo e seus agressivos companheiros, reeditando o “Pai, perdoa- -lhes porque não sabem o que fazem”, preparava o encontro pessoal do tapeceiro de Tarso com o próprio Senhor, a quem combatia, desesperada e incessantemente.
Imolou-se, realmente, uma grande vida, no apedrejamento insano.
Dilacerou-se, na verdade, um corpo jovem, em plenitude vital, para que uma alma idealista e generosa, calejada em milenárias experiências, ressurgisse no Plano Espiritual, triunfante em sua gloriosa missão, enquanto Paulo, no Plano Físico, nascia para a Verdade e a Luz.
Milhões de almas, espalhadas nos continentes terrestres, recolhem, hoje, as bênçãos da semeadura evangélica, realizada com destemor pelo ex-verdugo dos cristãos – semeadura que revelava não apenas a sabedoria de suas inolvidáveis epístolas, a ação valorosa e constante no disseminar as claridades da Boa-Nova, mas, igualmente, plena identificação com os ideais do Senhor: Já não sou eu quem vive, mas o Cristo que vive em mim!
Quem ama, perdoa.
Estêvão amava a Jesus, a Saulo, a humanidade inteira.
Só o amor, em sua mais elevada expressão, pode conduzir-nos aos páramos da Glória Imarcescível.
J. Martins Peralva
Fonte: Reformador, ano 88, n. 3, mar. 1970, p. 11(55)-12(56).
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