Jan Huss contra as indulgências (J. W. Rochester)

Era domingo de fim de maio de 1412. Apesar de ainda ser madrugada, as ruas de Praga já estavam cheias de gente. Uns apressavam-se para a missa, outros corriam para fazer compras nas inúmeras barracas-carroças que apareciam nos dias de feira vendendo diversas provisões trazidas das regiões vizinhas.

Na praça, diante da Igreja de Tyn, havia uma grande aglomeração de pessoas e a massa compacta cercava dois tablados de madeira. Em cima de cada um dos tablados havia um monge que falava ao povo. Sons de trombetas e tambores que soavam de tempos em tempos atraía cada vez mais curiosos.

Na multidão estavam Broda e Matias; um escutava com desaprovação e cenho franzido os pitorescos discursos dos monges enquanto o outro zombava deles com desprezo.

- Irmãos! - gritava um dos pregadores. - Minhas palavras são insuficientes para descrever toda a felicidade celestial que vocês poderão receber, garantindo-se com as indulgências que sua santidade, o papa João XXIII (1) ofereceu aos fiéis com a sua inesgotável generosidade de pai aos seus filhos pródigos. Quem de nós não tem um pecado manchando a consciência? Quem não tremerá diante do julgamento Divino ou não começará a implorar aos Céus o perdão aos caros falecidos que suportam terríveis sofrimentos no inferno? E quem de nós não receia por suas crianças, que talvez tenham de passar pela eterna maldição? Agora, vocês podem evitar todos estes sofrimentos, somente adquirindo as indulgências... Temos indulgências de todos os tipos e para todos os fins: completas e parciais, para 500, 300 e 200 anos; temos autorizações para pecados futuros e tempos também as cancelam os sofrimentos do purgatório. Temos indulgências para altos senhores e para os pobres, pois todos podem evitar os sofrimentos do outro mundo. Até aqueles que já estão a caminho da morte, podem tranquilamente aparecer diante dos portões dos céus e São Pedro, ao ler a sua indulgência, nem vai lhe perguntar sobre seus pecados, abrindo-lhe simplesmente as portas do céu. E lá, sobre nuvens douradas e prateadas, está o Deus Pai, junto com Seu Filho, cercado de plêiades de arcanjos e anjos, querubins e serafins. O pecador, em sua devoção, cairá de bruços diante do altar do Supremo; mas os anjos, ao verem a indulgência em suas mãos, irão mostrá-la a Deus e Cristo dirá: “O que meu representante perdoou na Terra, será perdoado no Céu. Vá, meu filho e cante Glórias a Mim.” E os anjos levarão o bem-aventurado às nuvens e mostrar-lhe-ão todas as belezas do paraíso; ele descansará sob a sombra da árvore da ciência do bem e do mal, e poderá comer, sem receio, aqueles mesmos frutos que um dia foram a perdição de Adão...

O monge, cansado, parou para tomar fôlego.

Seu discurso provocava sentimentos bastante diversos nos ouvintes. Alguns riam e vaiavam em tom de zombaria; de todos os lados da multidão provinham apelidos nada lisonjeiros ao papa e seus enviados. Mas, também ouviam-se gritos de protesto contra os valentões:

- Calem a boca, seus infiéis! Sejam amaldiçoados, mas não confundam os outros.

- Padre, é verdade o que o senhor acabou de dizer? - gritou uma mulher, toda em lágrimas de beatitude religiosa.

- A mais santa verdade - disse o monge. - Todos vocês estarão duplamente salvos, se pararem de ouvir os servos de satanás, que estão indignados vendo que o inferno se esvazia. Então, não percam tempo, irmãos: lá na igreja estão aguardando-os as preciosas chaves do céu. Apressem-se enquanto os lugares no céu não foram totalmente preenchidos! Apesar do céu ser grande, existem mais homens na Terra do que ele pode comportar.

Muitas pessoas da multidão correram para a igreja, mas Broda, rindo às gargalhadas, puxou Matias de lado.

- Sorria, meu velho! Este estelionatário de batina não conseguirá arrancar nada de nossos bolsos - disse ele.

- Mas, em compensação, quantos idiotas lhe entregarão seus últimos centavos por pedaço de pergaminho no qual cada palavra é uma mentira e blasfêmia? - indignava-se Matias.

- Esta imundície acontece já há três semanas - respondeu Broda. - Você esteve doente e não viu o início deste sacrilégio. Eu estive na própria catedral durante a leitura das duas bulas e, mesmo sendo soldado, quase caí. A igreja estava às escuras e era iluminada somente com velas que o clero trazia nas mãos; depois, trouxeram a bula da excomunhão, todas as velas foram imediatamente apagadas e jogadas no chão e os sinos começaram a tocar como num funeral. Então, passaram a anunciar que o rei napolitano é um inimigo da Igreja, por crime de perjúrio e heresia - e é excomungado pela Igreja por todos os seus crimes e com todos os seus descendentes até a terceira geração, e que idêntico castigo espera aos seus amigos e partidários. E quem ousar sepultar o rei de Nápoles, ou um de seus partidários, de modo cristão, também será excomungado e não receberá a absolvição até que desenterre os cadáveres com as suas próprias mãos. Que horror! - e Broda deu uma cusparada no chão.

- Isto é uma falta de vergonha, é uma monstruosidade. Como um servo de Deus pode receitar tais horrores? - indignava-se Matias, persignando-se.

- Infelizmente, só mostra a decadência da Igreja. O próprio papa diz tais torpezas e prega uma cruzada contra um rei cristão por causas leigas. E, para que os novos cruzados ajudem o papa com a espada e o ouro, eles prometem-lhes todos estes milagres que acabamos de ouvir.

Ainda bem que o mestre Huss, abre os olhos destes idiotas e mostra o verdadeiro valor das bulas e indulgências. Não é culpa dele que, mesmo assim, aparecem umas ovelhas que se deixam tosar.

- Certo. Ele luta como um leão pela verdade: prega, desmente e cola em todas as esquinas os seus cartazes com desmentidos. Jerônimo, desde que retornou à Praga, voltou a ajudá-lo. Mas, que homem! - prosseguiu Broda, entusiasmado. - Deus presenteou-o com todos os dons! Você viu, Matias, o quadro que ele pintou recentemente na parede?

- Não.

- Venha comigo, vou mostrar-lhe

- Mas não vamos nos atrasar para o sermão na capela de Belém?

- Claro que não! Depois, aceleramos o passo e chegaremos a tempo - responde Broda, arrastando o companheiro.

Perto da capela, diante de uma parede completamente rebocada, também havia uma multidão de curiosos, através da qual Broda e Matias começaram a passar, abrindo caminho a cotoveladas. Finalmente, viram-se diante de um quadro de gigantescas dimensões.

De um lado estava a imagem de Cristo, dócil e descalço, sentado num burrico e cercado de apóstolos, também descalços e com cajados nas mãos. Do lado diretamente oposto do Filho de Deus estava uma imagem do papa, de tiara na cabeça, montando um cavalo coberto com sobreanca bordada a ouro; à sua frente iam os arautos e corneteiros e atrás seguia uma magnífica corte de cardeais, trajando púrpura e cavaleiros em armaduras.

As observações e piadas que se ouviam da multidão comprovavam que o objetivo do artista havia sido plenamente atingido. Broda e Matias não ficaram olhando o quadro por muito tempo e, apressadamente, foram ouvir o sermão para o qual, apesar da insistência de Broda, chegaram atrasados.

Uma incontável multidão preenchia não só o interior do templo, mas também todo o prédio em volta, obrigando Broda a usar a sua gigantesca força para abrir caminho. Mesmo assim, não conseguiram passar além da porta; mas, sendo ambos de altura privilegiada, podiam ver por cima das cabeças o que se passava na capela.

Huss estava no púlpito e seu rosto emocionado refletia a ardente convicção que o inspirava.

A distância abafava algumas palavras do pregador. Somente quando ele, em seu ímpeto, elevava a voz, partes do discurso chegavam até Broda e Matias.

- Irmãos - dizia Huss naquele instante. - Não considerem o que falei como uma negação do poder do santo trono. Ninguém se submete mais docilmente, do que eu, à autoridade que Deus deu ao papa. Estou somente protestando contra o abuso de poder, principalmente neste caso. A consciência me obriga a prevenir a todos vocês contra tal fraude que deforma as próprias palavras de Cristo. O papa prega uma cruzada contra um rei cristão e incita povos uns contra os outros para garantir seus interesses de propriedade. E, aos que derramarem o sangue cristão ele promete indulgências e vende abertamente os preciosíssimos bens espirituais. O Senhor quando estava na cruz, rezava por seus algozes e criticou Pedro por levantar a espada em sua defesa, enquanto que este chefe da Igreja, dizendo-se representante de Cristo, somente vomita maldições, ameaças e condenações à morte... Pior, ele ordena desenterrar os mortos das covas para profanação, só por eles terem sido fiéis ao seu rei. A voz do pregador sumiu por um tempo, mas logo novamente ouviu-se:

- Tenham cuidado, irmãos, para não acreditar nas indulgências que são ditadas pelo ódio, e cada palavra escrita nelas é blasfêmia contra a verdade evangélica. Evitem comprar as falsas indulgências, que medem com ouro a misericórdia Divina e os consolam com mentirosas esperanças de perdoar seus atos maus com algo mais que um sincero e profundo arrependimento e boas ações!...

Quando o sermão terminou, a multidão começou a dispersar-se aos poucos.

Espírito: J. W. Rochester;
Psicografia :Wera Krijanowskaia;
Do livro: Os Luminares Tchecos.

(1) No século XX houve outro papa com o nome de João XXIII. Jan Huss foi incluído nesta página como uma justa lembrança a um espírito que, quando encarnado como um padre, desempenhou uma missão extraordinária ao lutar contra os absurdos dos papas da época, que vendiam "locais no paraíso" e dominavam o povo e monarcas. 




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