Por que alguns irmãos do movimento espírita classificam seu
trabalho de umbandista e não doutrinário? Você pode comentar esta questão?
Robson Pinheiro - Primeiramente, é preciso esclarecer que
umbandista não se opõe a doutrinário, se entendermos doutrinário como atinente
ao espiritismo. Afinal, um trabalho pode ser coerente com a doutrina de
umbanda, e não com a doutrina espírita.
No meu caso, entretanto, não conheço acerca de doutrina de
umbanda, nem tampouco qualquer linha de meus livros versam sobre esse tema. Ou
seja, nem eu conheço o assunto nem os espíritos que escrevem através de mim
abordam doutrina umbandista.
Afinal, sou espírita, minha formação é espírita e o
compromisso meu e dos espíritos que me dirigem é com o espiritismo. E aí a
questão proposta esbarra em algo maior, para o qual devo me alongar a fim de
procurar ser mais claro.
Ocorre que, para a certa surpresa de Allan Kardec, muitos de
seus adeptos acabaram por delimitar assuntos para o debate ou o olhar espírita,
baseando-se em uma perspectiva estreita e, com isso, separando temas e
abordagens em compartimentos estanques — doutrinário ou antidoutrinário —, à medida
que se desenvolvia o movimento espírita. Imagine, um homem que foi porta-voz de
uma revelação que, segundo ele, pretendia contribuir para o esclarecimento de
qualquer religião, sem constituir necessariamente uma religião à parte!
Como esse homem poderia ser um purista, alguém que não desejasse versar sobre quaisquer temas por meio da ótica espírita, das lentes e ferramentas que o espiritismo oferece?
Essa é a leitura que faço da atitude kardequiana, que
perpassa todos os seus escritos. Repare a obra de sua autoria chamada Catálogo
racional para se fundar uma biblioteca espírita, que a Madras Espírita traduziu
pela primeira vez, na época do saudoso Eduardo Carvalho, e a FEB hoje publica
na coletânea de opúsculos denominada O espiritismo em sua mais simples
expressão. Naquele Catálogo, Kardec inclui uma categoria inteiramente dedicada
aos livros “produzidos fora do espiritismo”, bem como outra destinada às obras
contrárias à doutrina nascente. Em minha opinião, isso denota o interesse por
todos os temas, a certeza de que o debate espírita não precisaria se restringir
a este ou aquele tema, mas ampliar-se o máximo possível.
O que quero dizer com tudo isso é que livros meus como
Tambores de Angola ou Aruanda efetivamente falam de temas ligados às doutrinas
religiosas de caráter mediúnico e com forte expressão da cultura do negro e do
indígena (umbanda, candomblé etc.), mas jamais enfocam seu aspecto doutrinário.
Não é seu objetivo nem minha pretensão. Procuram tão-somente demonstrar como o
trabalho ocorre nesses meios tanto para promover um exercício de fraternidade —
mostrando que não é só o jeito espírita a única forma de fazer — quanto para
destacar que, por razões históricas e culturais que transcendem aspectos
doutrinários, figuras como o preto-velho, o caboclo e o exu fazem parte da
realidade brasileira, quer o espírita goste ou não.
Afinal, por que razão não haveriam de povoar o panorama
espiritual do Brasil os espíritos que aqui viveram e morreram? E, estando aqui,
só podem contribuir nesta ou naquela religião? Ora, se o espírito é minimamente
esclarecido, não é sectarista; usa as ferramentas de cada culto conforme a
tradição de seus adeptos. Sendo assim, um preto-velho pode usar cachimbo numa
casa de umbanda, onde isso é habitual, e certamente não o fará numa casa
espírita, pois que nesta soaria como afronta.
Se fosse verdadeira a classificação dos espíritos de acordo
com sua feição espiritual — “preto-velho é espírito da umbanda”, por exemplo —,
formulo a seguinte indagação. Como podemos trabalhar com padres e freiras no
espiritismo? Acaso alguém lhes pediu para abandonarem seus títulos e vestes
sacerdotais para que pudessem ser aceitos? Acaso alguém viu em sua presença e
atuação uma ameaça de catolicização do espiritismo? Então, por que adotar uma
conduta com aqueles que representam o povo historicamente oprimido e
discriminado e portar-se de outro modo com aqueles que têm seu passado
associado à instituição que mais atrocidades cometeu contra a humanidade, em
inumeráveis perseguições em nome de Deus?
Qual a importância do Espiritismo para o seu trabalho?
Meu livro de Memórias, em que narro histórias minhas com os
espíritos, relata como ingressei no espiritismo. Foi por meio da intervenção
direta dos benfeitores na igreja evangélica, quando me preparava para formar-me
pastor. Foram eles que me apresentaram os livros de Allan Kardec e o endereço
de um centro espírita a procurar, ambos anotados no púlpito da igreja, ao fim
de uma pregação mediúnica que fizeram através de mim.
Foi Chico Xavier, ainda que com a contribuição mais esparsa
de outros médiuns, o porta-voz dos espíritos para a fundação e orientação de
todos os núcleos de trabalho de que participo hoje.
Ele é quem encorajou a publicação do primeiro livro — Canção
da esperança —, que eu temia, apesar das reiteradas orientações dos espíritos
por meu intermédio. A ponto de entregar-me psicografia dele, de autoria do
espírito Bezerra de Menezes, que prefacia o livro. Ele também foi quem disse,
ao lhe mostrar Tambores de Angola no prelo: “Lance, meu filho, pois esse livro
precisa sair. Mas aproveite e se lance para fora do país por um tempo (…) por
causa da caridade dos irmãos espíritas…” — disse, apontando para a língua
enquanto pronunciava a palavra caridade.
Além disso, e do que já demonstrei na resposta à primeira
pergunta, os críticos de meus livros ainda não nos apontaram objetivamente, uma
vez sequer, em que ponto nossos livros contrariam Kardec e seus escritos. Como
nosso compromisso é com o espiritismo — e não com os espíritas ou com a leitura
que muitos fazem do espiritismo —, considero-me fiel ao mandato a mim confiado.
Sendo assim, o espiritismo é o ar que respiro, é o
compromisso maior da Universidade do Espírito de Minas Gerias, instituição que
engloba as demais por mim fundadas e que hoje conta com mais de 300 alunos em
cursos regulares de estudo do espiritismo. A questão talvez seja o conceito que
cada um tem a respeito do que seja espiritismo, do que represente ser fiel aos
preceitos da falange do Espírito Verdade. A quem caberá o monopólio de tal
julgamento?
Nossos livros são desafiadores, controversos, talvez
polêmicos, e chocam o status quo no movimento espírita? Que bom! Kardec foi
altamente controvertido e criticado, a seu tempo. O mesmo vale para Jesus.
Portanto, creio que também assim — embora não somente assim — seguimos seus
passos.
Uma análise de José Passini do seu livro Legião circula na
Internet. Nela, o autor comenta dezenas de passagens e frases do seu livro com
o objetivo de confirmar a tese de que suas “revelações” não seriam reais,
colocando dúvidas quanto a seriedade de seu trabalho. O que você pode dizer a
críticos desta natureza?
Não conheço tal crítica, feita em público, mas jamais
remetida à Editora; no mínimo, nunca chegou às minhas mãos. Portanto, não posso
analisar seu conteúdo nem comentá-la.
Entretanto, hei de confessar que não acompanho semelhantes
debates na internet, pois a vejo como um fórum onde se resvala para a crítica
pessoal, com desdém e desrespeito, ainda de modo mais fácil e freqüente que em
outras mídias. Nas poucas vezes em que resolvi lidar com tais comentários,
concluí que de duas, uma: ou fazia meu trabalho, ou me ocupava em ficar
respondendo e debatendo as inúmeras críticas. Optei pela primeira alternativa,
sobretudo porque não há tempo para tudo quanto há. Há tanto por realizar!
Consolo-me na postura de todos os verdadeiros seguidores de
Jesus — a que aspiro ser —, que jamais se deixaram levar pelas críticas a ponto
de demovê-los da tarefa que lhes fora confiada. E críticos sempre os há! Chico
me disse, certo dia, algo como: “Se ficar em casa e não fizer nada, ainda assim
falarão de você, chamando-o de preguiçoso. Portanto, prossiga!”. E o mentor
Alex Zarthú: “Responda as críticas aumentando a qualidade de seu trabalho”. É
nisso que tenho me baseado.
Ah! Preciso acrescentar: meus livros não trazem revelações;
nada há neles que seja novidade a ponto de ser assim classificado. E são
produto do pensamento de seus autores espirituais, é bom que se diga, e não
fruto de elaborações que partem de meu conhecimento pessoal. Há pontos que até
para mim se afiguram inusitados ou obscuros e que, de mais a mais, obrigam-me a
estudar e rever meus pontos de vista. Sem contar os debates prévios à
publicação, em que os enchemos de perguntas e dúvidas…
Como suas palestras e cursos vem sendo recebidos nas casas
espíritas que você visita no Brasil?
Muito bem, nas que me convidam. Ao menos é assim que
entendo, com algumas exceções, é claro. Ninguém agrada a todos.
Atualmente quais os trabalhos de médiuns brasileiros que
você pode destacar?
São muitos… Mas que prefiro não nomear. Sabe como é: muitos
são amigos ou conhecidos e, de mais a mais, evito até certo ponto até mesmo a
leitura do que está sendo produzido atualmente, como forma que encontrei de me
preservar da influência alheia sobre meu trabalho mediúnico.
Ciência, filosofia e religião. Como você analisa a
convivência entre os polos da Doutrina?
O espiritismo tem no laboratório da mediunidade seu campo
experimental e faz-se ciência na medida em que adota um método claro para
promover e lidar com os resultados obtidos. Esses resultados são, em grande
medida, de natureza filosófica, de uma filosofia com consequências morais, e é
aí que repousa seu aspecto religioso — no aspecto moral —, conforme esclarece Kardec
na introdução de O Evangelho segundo o espiritismo.
Se por convivência se quer dizer de como interagem tais
aspectos na atualidade, claramente a prática brasileira do espiritismo
privilegiou o lado religioso, em virtude de traços fortes, inerentes à nossa
cultura. Sem qualquer julgamento sobre essa realidade, é forçoso reconhecer que
cabe ao adepto moderno do espiritismo conciliar tais frutos com o reacender da
chama dos aspectos filosófico — por meio do incentivo ao estudo interessante e
prazeroso dos postulados espíritas — e científico do espiritismo, retomando a
experimentação mediúnica destemida, o exame crítico das comunicações e a
coragem e a pró-atividade kardequianas ao abordar a dimensão extracorpórea.
Qual o livro de sua autoria que mais te marcou?
Sinceramente, não consigo decidir. Há vários, pelos aspectos
mais distintos. Todos são como filhos, e é duro dizer a um pai que deve
escolher entre os filhos.
Qual o principal conselho que você pode dar a um estudante
de espiritismo?
Estude, estude, estude. Quando achar que está pronto, estude
mais. Pergunte, sem medo, cultive a curiosidade verdadeira, o desejo pelo
saber, que é o combustível do qual Kardec se serviu para promover as
investigações que empreendeu. Jamais esqueça Kardec — mais ainda o espírito de
seus textos, a atitude que revelam, que os textos propriamente ditos, num apego
à letra que pode se tornar fundamentalista. Tudo começou — e persistiu — com a
curiosidade do homem Kardec, seu ânimo, as perguntas por ele formuladas
previamente às reuniões, com método, critério e redação esmerada. O livro dos
espíritos — e o espiritismo, por extensão — nasceu a partir de suas indagações,
de sua vontade de conhecer e aprender.
Em Kardec está a base para todo o resto, está o porto seguro
para nossa prática, nosso dia-a-dia. Apreendamos dele a ética de nunca se
render à tentação atávica de colocar os espíritos em claustros ou altares de
santificação. Despeço-me com suas lúcidas palavras: “Conduzi-me, pois, com os
Espíritos, como houvera feito com homens. Para mim, eles foram, do menor ao
maior, meios de me informar e não reveladores predestinados. Tais as
disposições com que empreendi meus estudos e neles prossegui sempre. Observar,
comparar e julgar, essa a regra que constantemente segui” (Kardec, A. Obras
póstumas. Rio de Janeiro, Feb: s.d., ed. especial. ii parte. A minha primeira
iniciação no espiritismo, p. 329).
Escrito por Manoel Fernandes Neto
Fonte: Site da Revista Cristã de Espiritismo