O Livro dos Espíritos entre os selvagens

Sabíamos que O Livro dos Espíritos tem leitores simpáticos em todas as partes do mundo, mas estaríamos certamente em dúvida que se pudessem encontrá-los entre os selvagens da América do Sul, sem uma carta que nos foi endereçada de Lima, há alguns meses, e da qual cremos dever publicar a tradução integral, em razão do fato significativo que ela encerra, e do qual cada um compreenderá a importância. 

Ela traz consigo seu comentário, e não lhe acrescentaremos nenhuma reflexão.

"Muito honrado senhor Allan Kardec, "Perdoe-me em não vos escrever em francês; compreendo essa língua pela leitura, mas não posso escrevê-la correta e inteligivelmente.

"Freqüento, há mais de dez anos, as povoações aborígenes que habitam a vertente oriental dos Andes, nos países da América, nos confins do Peru. 

Vosso O Livro dos Espíritos, que obtive em uma viagem a Lima, me acompanha nessas solidões; dizer-vos que eu li com avidez, e que o releio sem cessar, isso não deve vos espantar, também não viria vos perturbar por tão pouca coisa, se não cresse que certas informações podem vos interessar, e se não tivesse o desejo de obter de vós alguns conselhos, que espero de vossa bondade, não duvidando que vossos sentimentos humanos não estejam de acordo com os sublimes princípios de vosso livro.

Esses povos que chamamos selvagens, o são menos do que se crê geralmente; querendo-se dizer que habitam cabanas em lugar de palácios, que não conhecem nossas artes e nossas ciências, que ignoram a etiqueta de pessoas polidas, eles são verdadeiros selvagens; mas sob o aspecto da inteligência, entre eles se encontram idéias de uma justeza espantosa, uma grande finura de observação, e de sentimentos nobres e elevados. 

Eles compreendem, com uma maravilhosa facilidade, e têm o espírito, sem comparação, menos pesado do que os camponeses da Europa. Desprezam o que lhes parece inútil, com relação à simplicidade que basta ao gênero de vida. 

A tradição de sua antiga independência está sempre viva neles, por isso têm uma aversão insuperável por seus conquistadores; mas, se odeiam a raça em geral, prendem-se aos indivíduos que lhes inspiram confiança absoluta. 

É a essa confiança que devo o viver em sua intimidade, e quando estou no meio deles, estou mais em segurança do que em certas grandes cidades. Quando os deixo ficam tristes, e me fazem prometer retornar; quando retorno, toda a tribo está em festa.

Essas explicações eram necessárias para aquilo que vai seguir. Disse-vos que tenho comigo O Livro dos Espíritos. Um dia, tomei o capricho de traduzir-lhes algumas passagens, e fiquei fortemente surpreendido em ver que o compreendiam melhor do que houvera pensado, em conseqüência de certas anotações, muito judiciosas, que faziam. 

Eis um exemplo. A idéia de reviver na Terra lhes parecia muito natural, e um deles me disse um dia: quando morrermos, poderemos nascer entre os Brancos? - Seguramente, respondi. - Então, talvez sejas um de nossos parentes? - É possível. - Sem dúvida, é por isso que és bom para nós e que nós te amamos? - É ainda possível. - Então, quando encontrarmos um Branco não é preciso fazer-lhe mal porque, talvez, seja um de nossos irmãos.

Admirais, sem dúvida, como eu, senhor, essa conclusão de um selvagem, e o sentimento de fraternidade que ela fez nascer nele. De resto, a idéia de Espíritos não é nova para eles; está em suas crenças, e estão persuadidos de que se pode conversar com os parentes que morreram e que eles vêm visitar os vivos. 

O ponto importante está em disso tirar partido para moralizá-los, e não creio que isso seja uma coisa impossível, porque eles não têm ainda os vícios de nossa civilização. Aqui é que teria necessidade dos conselhos da vossa experiência. 

Erra-se, penso, em crer que não se pode influenciar as pessoas ignorantes senão falando aos seus sentidos; penso, ao contrário, que é mantê-las em idéias estreitas, e desenvolver nelas a tendência à superstição. Creio que o raciocínio, quando sé sabe colocá-lo à altura das inteligências, terá sempre um império mais durável. 

Na espera da resposta com a qual podereis me favorecer, receberei, etc.
 
Don Fernando Guerrero

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