Uma forma de evitar claramente que sensações, pensamentos, impulsos ou lembranças cheguem ao nosso consciente tem o nome de transferência ou projeção.
Projetar nossas ações e emoções nos outros, agindo como se elas não nos pertencessem, e recusar nosso mundo íntimo, não aceitando as coisas em nós como elas realmente são, pode se tornar um constante “acessório psicológico”, um processo preferencial do ego.
O método para projetarmos nossa vida íntima em outra pessoa funciona de certa forma em duas etapas: negação e deslocamento.
Primeiro um fato ou acontecimento que provoca um sentimento inadequado é negado, bloqueado do consciente e deslocado para o mundo externo. Tomemos por exemplo: um indivíduo que num determinado momento da vida teve um desentendimento com uma pessoa e desenvolveu um sentimento de antipatia e aversão por ela pode, posteriormente, julgar que superou as diferenças e que aquele episódio é uma “página virada”. No entanto, ele não consegue perceber que sua emoção pode ter sido inconscientemente projetada sob forma de uma suposta antipatia e aversão dessa pessoa por ele. O que estava dentro foi jogado para fora.
Uma vez que é atribuída a outras criaturas, a sensação de aversão é notada como completamente alheia, não nos pertence, não nos diz respeito. É, simplesmente, de outrem; jamais nossa. Nós somos bons perdoamos, mas os outros são maus, rancorosos e não perdoam.
“Assim são os homens. É como se lhes tivessem colocado dois alforjes: no peito, o alforje com os males alheios, e nas costas, o alforje com os próprios males. De tal modo que eles são cegos quanto aos próprios defeitos, mas enxergamos com nitidez os defeitos dos outros.”
É comum encontrar no dia-a-dia indivíduos que apresentam comportamentos idêntico. Ao invés de se dedicarem à tarefa de conscientização da própria vida íntima, evidenciam o argueiro no olho do vizinho e, por consequência, potencializam a trave que lhes obscurece a visão do mundo interior.
As mentiras que mais nos causam danos e nos impedem o crescimento espiritual não são tanto as que verbalizamos, mas as que contamos inconscientemente para nós, aquelas que projetamos.
Vivemos ilusões quando desfiguramos a realidade de nossa experiência ou a verdade de nosso ser e adotamos um “papel” que não corresponde à verdade. Apresentamos aqui o que em linguagem informal denominamos “máscaras”: são elas que turvam nossa verdadeira realidade interior; é delas que nos servimos para lançar fora o que está em nossa intimidade.
Projetamos e interpretamos papéis quando nossas reivindicações internas (processos psíquicos fortemente emocionais, impulsivos e basicamente irracionais) entram em choque com as regras e normas sociais, passando do campo da consciência para o da inconsciência.
Representamos como se fôssemos verdadeiros atores, interpretando uma personagem no palco ou no cinema, quando nos colocamos diante de alguém como sendo mais do que somos; quando dissimulamos um amor ou um desinteresse que não sentimos; quando nos mostramos alegres, e na realidade estamos tristes; quando aparentamos uma frieza que não experimentamos; quando escondemos e mantemos em segredo tudo aquilo que mais queremos e desejamos; quando aderimos a associações de caráter recreativo, cultural, artístico, religioso, político e social, etc., para obter benefícios eu não merecemos, recebendo elogios e reconhecimento.
O crescimento pessoal exige, acima de tudo, coerência, o que significa que o Si-mesmo (Self) deve estar numa relação harmônica entre o que se sente e o que se vive; deve haver uma identidade ou semelhança entre as partes de um todo.
Por que falsificamos nossa realidade? Afinal, o que conseguimos com isso? Danificamos nossa própria intimidade e atravessamos toda uma existência com a angustiante sensação de sermos impostores ou farsantes. Além disso, vivemos aprisionados à angústia e ao medo de um dia descobrirmos quem realmente somos.
O alvorecer do despertar manifesta-se no ser amadurecido quando a luz da consciência ilumina não apenas as áreas externas, mas, acima de tudo, as internas. Muitos indivíduos se satisfazem apenas por possuírem os olhos físicos, que lhes oferecem uma visão parcial ou incompleta da vida. Mas para vermos as coisas tais como são, é preciso desenvolver a acuidade do olho que esclarece, ilumina e guia — aquele voltado para o mundo íntimo. A partir daí, cessamos de projetar de forma contínua.
Como todos os nossos companheiros de viagem transcendental, desejamos preencher ou compensar o vazio existencial que sentimos por não vivermos a essencialidade de nosso ser.
Nossos anseios de ser e de possuir alguma coisa são, no fundo, a compensação da falta de não termos quase nenhuma consciência do que somos e nem para que fomos criados.
Sempre que distinguimos alguma coisa fora de nós e a reprovamos em demais como sendo perniciosa, perigosa, pervertida, imoral, e assim por diante, é provável que ela represente conteúdo existente em nós mesmos, sem que os reconheçamos como possíveis características nossas. A ameaça é tratada como se fosse uma força externa, e não interna. Se afirmamos categoricamente “todos são desonestos”, estamos, na verdade, tentando projetar nos outros nossas próprias tendências. Ou então, ao dizermos “tudo gira em torno de uma só coisa: sexo”, podemos estar direcionando nossa disposição interna nas demais criaturas, por estarmos pessoalmente insatisfeitos. Muitas vezes dizemos “é inexplicável como aquela pessoa não gosta de mim”, quando, na realidade, somos nós que não gostamos dela, sem nos darmos conta.
Hammed;
Psicografia: Francisco do Espírito Santo Neto;
Do livro: La Fontaine e o Comportamento Humano;
Texto baseado na fábula Os dois Alforjes.
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