A Epístola Lentuli (Artigo de Pedro de Campos publicado na revista Espiritismo & Ciência de junho de 2011)
A EPÍSTOLA LENTULI – Parte 1/3
Pedro de Campos
Dentre os chamados documentos apócrifos do Novo Testamento (NT), em particular os que compõem o chamado Ciclo de Pilatus, escrituras oficiais do processo condenatório de Jesus, temos a Carta de Públio Lentulus ao Imperador Tibério César, conhecida em latim como Epistolae Lentulii. Nesse documento, o autor da carta descreve ao imperador de Roma a physiognomia Christi
e alguns dos atos messiânicos de Jesus. A carta se tornou famosa por
descrever o Cristo assim como nós o conhecemos hoje, nas obras de arte.
E, também, por retroceder o retrato falado à Idade Antiga, dando
legitimidade à figura do Cristo.
Por certo, não poderíamos exigir o testemunho da physiognomia Christi de três autores do NT (Marcos, Lucas e Paulo), responsáveis por 17 livros, pois não conheceram Jesus. Mas o mesmo não se poderia dizer dos cinco autores restantes (Tiago, Judas, Pedro, Mateus e João), responsáveis por 10 livros componentes do NT; estes, estranhamente, tendo convivido com o Cristo, não o descreveram, fazendo-nos pensar sobre os motivos de tal omissão. Sem dúvida, o testemunho do senador Públio Lentulus legitima e agrega valor ao conhecimento.
É preciso destacar que o Ciclo de Pilatus é um conjunto de escrituras não pertencentes ao cânone bíblico, mas consideradas por muitos como de autores contemporâneos de Jesus, nas quais são relatados os últimos momentos do Cristo em seu martírio nas mãos do procurador da Judeia. Dentre essas, está o retrato falado de Jesus, feito pelo senador Públio Lentulus.
Por certo, não poderíamos exigir o testemunho da physiognomia Christi de três autores do NT (Marcos, Lucas e Paulo), responsáveis por 17 livros, pois não conheceram Jesus. Mas o mesmo não se poderia dizer dos cinco autores restantes (Tiago, Judas, Pedro, Mateus e João), responsáveis por 10 livros componentes do NT; estes, estranhamente, tendo convivido com o Cristo, não o descreveram, fazendo-nos pensar sobre os motivos de tal omissão. Sem dúvida, o testemunho do senador Públio Lentulus legitima e agrega valor ao conhecimento.
É preciso destacar que o Ciclo de Pilatus é um conjunto de escrituras não pertencentes ao cânone bíblico, mas consideradas por muitos como de autores contemporâneos de Jesus, nas quais são relatados os últimos momentos do Cristo em seu martírio nas mãos do procurador da Judeia. Dentre essas, está o retrato falado de Jesus, feito pelo senador Públio Lentulus.
Muitos acreditam que os apócrifos pertencentes ao Ciclo
sejam do início da Era Cristã. E que, ao longo dos séculos, por falta
de uma versão oficial (pois a característica do apócrifo é não ter feito
parte do cânone da Igreja), as diversas traduções podem ter mexido nos
dizeres originais. Hoje, o interesse está em encontrar o texto mais
antigo, capaz de legitimar uma das versões. Não se descarta a hipótese
de encontrá-lo na Itália, no Vaticano, na Igreja Ortodoxa Grega, na
Turquia ou em outra importante biblioteca.
Conforme pesquisamos, informações valiosas sobre a Epístola Lentuli foram dadas no século XIX, por Edward Robinson, que coordenou a obra The biblical repository. Nessa publicação, o autor trouxe um artigo intitulado On the letter attributed to Publius Lentulus, respecting the personal appearance of Christ
[Sobre a carta atribuída a Públio Lentulus, a respeito da aparência
pessoal de Cristo], texto comentado de uma antiga publicação em latim.
Esse texto já tinha sido publicado antes, no Calmet’s dictionary, num artigo intitulado Lentulus.
Nele, Robinson informa que a versão mais antiga da qual tivera
conhecimento fora publicada por Anselmo, arcebispo de Canterbury, morto
no ano de 1109. O autor explica que essa mesma carta seria publicada
séculos depois, em Paris, no final do século XV (ou início do XVI), em
primeira versão francesa. Sabe-se, também, que essa Epístola
fora republicada várias vezes, em muitos países, e vertida para vários
idiomas, até o editor Anthony Maas, em 1910, resolver publicá-la em Nova
York, em língua inglesa, no volume 9 do The catholic encyclopedia, sob o título The letter of Lentulus.
A carta que apresentamos é uma reimpressão do Monumenta S. Pattrum orthodoxographa,
editado na Basileia, 1569, em latim, sob a coordenação de Erhard Cell e
Johann Jakob Grynaeus; também a damos aqui em português, sem os rigores
de uma tradução Ipsis litteris que deixaria a carta fora do uso corrente da língua.
REGISTROS DE EMMANUEL
A obra Há 2000 anos...,
psicografada por Francisco Cândido Xavier, sob a influência de
Emmanuel, espírito que na Roma Antiga encarnara a personalidade do
senador Públio Lentulus, – não traz a Epístola Lentuli,
mas, de modo intrigante, fala sobre a fisionomia do Cristo e faz menção
expressa à carta, declarando, o espírito, tê-la escrito naquela
encarnação.
No capítulo III, Em casa de Pilatos, o autor faz uma breve descrição da physiognomia Christi,
conforme havia escutado do lictor Sulpício Tarquinius, homem de
confiança de Pilatos. Nela, o autor se mostra em sintonia com a Epístola Lentuli, a qual haveria de redigir pouco depois de seu encontro com Jesus.
No capítulo VII, em As pregações de Tiberíades,
Lívia, esposa de Lentulus, querendo manisfestar seu reconhecimento a
Jesus pela cura da filha, foi assistir a um sermão. Ao vê-lo chegar na
barca de Simão Pedro, descreve-o: “Sua
fisionomia parecia transfigurada em resplendente beleza; os cabelos,
como de costume, caíam-lhe aos ombros, à moda dos nazarenos”.
No final do capítulo V, intitulado O Messias de Nazaré,
Emmanuel registra que após Lentulus receber de Roma um liberto da parte
do senador Flamínio Severus, ainda envolto na felicidade de ter a filha
curada após seu encontro com Jesus, escreve ao amigo “uma
longa carta, em suplemento, com vistas ao Senado Romano, sobre a
personalidade de Jesus Cristo, encarando-a serenamente, sob o estrito
ponto de vista humano, sem nenhum arrebatamento sentimental”, segundo suas próprias palavras.
Tanto
a descrição de Sulpício quanto a de Lívia, relatadas por Emmanuel,
assim como sua carta endereçada a Flamínio, todas da psicografia Xavier,
estão em perfeita sintonia com a Epístola Lentuli.
Esse
apócrifo, conhecido hoje mundialmente, veio à luz pela via histórica
tradicional, não foi dado pelos espíritas. A carta, além de nos dar
conhecimeno da physiognomia Christi,
patenteou também a existência do senador Públio Lentulus, encarnação do
espírito Emmanuel. Chico Xavier, por sua vez, medianeiro do livro Há 2000 anos..., no qual o espírito autor informa ter escrito a carta, nada conhecia da Epístola Lentuli quando psicografara a obra.
Cabe
ressaltar que os livros de Emmanuel, falando da Roma Antiga, não são
dados por ele como romance; ou seja, como literatura em que as coisas
“possíveis” se tornam “verdadeiras”, mas como casos realmente vividos.
Embora o espírito se utilize de técnica romanceada, as passagens são
autobiográficas, dadas como verídicas. Em termos históricos, o ponto
culminante, em Há 2000 anos..., é seu encontro com Jesus e sua revelação de ter sido o autor da famosa carta.
Quanto ao livro Lentulus – Encarnações de Emmanuel,
lançado por nós, tem o propósito de mostrar quem foi o espírito mentor
de Chico Xavier em duas de suas encarnações na Roma Antiga. O nosso
compromisso é com a verdade histórica. A obra traz o que há de mais
atual sobre a Epístola Lentuli,
sobre a vida do senador Públio Lentulus e a de seu bisavô, o cônsul
romano Lentulus Sura, político que vivera na época da República de
Cícero. Dá aos espiritistas, em geral, e aos formadores de opinião, em
particular, a chance de conhecer, com a força viva da história, a vida
desses homens ilustres do passado.
PAULO REPROVA OS CABELOS LONGOS
Não nos propomos neste artigo dissecar o Ciclo de Pilatus
e outras escrituras dadas como apócrifas pela Igreja, nem tampouco os
livros dos pais da Igreja, teólogos de expressão como Justino de Roma,
Tertuliano, Irineu de Lyon, Eusébio de Cesareia, Giovanni Damasceno,
Gerônimo Xavier e ainda outros historiadores que arrolamos no livro Lentulus. Quem tiver interesse encontrará isso no livro.
Na obra Lentulus, o resultado dessas investigações foi resumido em alguns pontos capitais, cinco contra à autenticidade da Epístola
e outros cinco favoráveis a ela. Aqui vamos aprofundar apenas um deles:
um versículo de Paulo contrário à carta. Nele, o apóstolo reprova o uso
de cabelo comprido para os cristãos, contrariando o costume de Jesus.
Cabe-nos tentar entender os motivos dessa sua postura.
Paulo instrui os coríntios, dizendo: “A
natureza mesma não vos ensina que é desonroso para o homem usar cabelos
compridos [na sociedade romana, em parte da Grécia e na Ásia Menor], ao
passo que, para a mulher, é glorioso ter longa cabeleira, porque os
cabelos lhe foram dados como véu [as judias casadas cobriam a cabeça com Kissuí, enquanto as solteiras não]. Se, no entanto, alguém quiser contestar [e haveria de contestá-lo em razão dos cabelos longos de Jesus], não temos este costume [Paulo vivia em sociedade culta e usava cabelos curtos], nem tampouco as igrejas de Deus [as primeiras igrejas cristãs do mundo antigo]” I Cor 11:14-16.
Paulo
não conheceu Jesus, senão na estrada de Damasco, numa viagem (At 9).
Quem conta esse episódio é seu companheiro Lucas, que também não
conheceu o Cristo. Paulo não era tido como apóstolo pelos demais, mas
por seus seguidores (1 Cor 9:2). Contudo, é pouco provável que não
soubesse do costume de Jesus. Emmanuel, em Paulo e Estêvão (PP cap.10), corrobora dizendo que no “caminho de Damasco”, Paulo vira que “os cabelos [de Jesus] tocavam nos ombros, à nazarena”. Por certo, seus motivos para reprovar o cabelo comprido seriam sociais.
As instruções de Paulo, em I Coríntios,
seriam para dar postura moral e prevenir ocorrências futuras, pois o
uso de cabelo comprido daria aos cristãos e aos padres uma aparência
feminina, indecorosa aos homens conforme os costumes vigentes na época,
em cidades cultas e prósperas do Império Romano.
Mas, nos dizeres de Paulo, havia um senão: “Se, no entanto, alguém quiser contestar...”. Nisso deixa claro que suas instruções poderiam ser rejeitadas. Porque Jesus, conforme sabemos da Epístola Lentuli,
usava cabelos compridos, como os demais nazarenos. Se alguém quisesse
imitá-lo (e Paulo sabia que muitos poderiam fazê-lo), a má fama do
cabelo comprido nas cidades cultas colocaria em jogo a propagação do
Cristianismo nascente.
A TRADIÇÃO DOS NAZARENOS
Revendo
um pouco a História Antiga, nos tempos de Moisés os hebreus usavam
cabelos longos, ao natural, assim como cresciam. Foram proibidos de
cortá-los de forma redonda, como os árabes, os amonitas, os moabitas e
outros povos vizinhos, que assim os usavam para imitar o deus Baco, do
qual eram devotos. Os hebreus também não podiam cortar os cabelos para
imitar os mortos nem os antepassados ilustres como Adão, tido por eles
como de cabelos curtos, diferentes dos de Eva, que seriam longos.
Mas
o avanço das civilizações fez o povo mais culto de Israel usar cabelos
curtos. Os judeus que se ocupavam do serviço no templo, revesando-se ali
a cada 15 dias, eram exigidos pelos sacerdotes a cortar os cabelos
curtos, mas usando a tesoura, não a navalha.
Para cumprir o sexto capítulo de Números, os nazireus (de nazir),
religiosos consagrados ao sacerdócio e não pertencentes à tribo de Levi
(responsável pelo sacerdócio mosaico), usavam os cabelos como cresciam,
sem cortá-los até o término do nazireado.
Esse sacerdócio
poderia durar meses, anos ou até mesmo a vida inteira. E a cabeleira
crescia sem cessar, dando ao homem uma aparência de “profeta”, como se
diria hoje. Terminada a missão, em cerimônia religiosa, sempre
acompanhada de sacrifício, raspavam a cabeça e queimavam os cabelos,
segundo antigo costume.
Jesus não era da tribo de Levi, mas da de Judá, como mostram as genealogias de Mateus 1:2 e Lucas 3:33, ainda reiterada em Hebreus 7,14: “É bem conhecido, de fato, que nosso Senhor surgiu de Judá, tribo a respeito da qual Moisés nada falou sobre o sacerdócio”.
Ocorre
que a primeira aliança feita por Deus, para exercício do sacerdócio com
a linhagem dos levitas, seria substituída depois por uma segunda, desta
vez com a tribo de Judá. “Dias virão, diz o Senhor, nos quais concluirei com a casa de Israel e com a casa de Judá uma nova aliança” Hebreus 8:7-8. Assim, no tempo certo, o Cristo, oriundo da “casa de Judá”, entrou no santuário de Israel para exercer o seu ministério.
Jesus, não sendo levita, conforme a Lei estalelece, devia cumprir o capítulo seis de Números, como o fizera João Batista, seu primo de segundo grau. Teria de fazer o voto especial de nazir,
o “consagrado” a Deus, comprometendo-se a não cortar a cabeleira, a não
beber vinho, a não se aproximar de cadáver e de coisa impura durante o
seu ministério.
Tudo indica que, dessas exigências, Jesus
preferiu ficar com a tradição dos nazarenos e não cortar os cabelos,
tendo vivenciado plenamente a profecia do Salmo de Davi: “Mais que os cabelos da minha cabeça são os que me odeiam sem motivo” Sl (69)68:5(4).
De fato, quando Jesus Nazareno iniciou a sua missão, dizendo-se o
Messias, foi odiado por muitos, em número maior que o de seus cabelos.
Como
habitante de Nazaré (Mt 2:23), pequena aldeia agrícola nas terras do
sul da Galileia, com menos de trinta famílias, situada no caminho das
caravanas que seguiam ao mar da Galileia, à Samaria e à Síria, Jesus
vivia em meio aos simples – não era respeitado até então. Os nazarenos
sempre foram rejeitados pelos judeus das grandes cidades, possuidores de
bens e de maior cultura. Assim como os nazarenos, Jesus fora
desprezado, tendo passado a vida no anonimato.
Conforme as profecias: “Desde
criança crescera diante dele mesmo, como um renovo, como raiz que brota
de uma terra seca; não tinha beleza nem esplendor que pudesse atrair o
olhar de outros, nem formosura capaz de deleitá-los. Era desprezado e
abandonado pelos homens; estava sujeito à dor, familiarizado com a
enfermidade, vivia como pessoa de quem todos escondem o rosto;
desprezado, ninguém fazia caso nenhum dele. E, no entanto, eram as
enfermidades do homem que ele levava sobre si, carregando as dores do
mundo” Is 53:2,3. Quando Jesus iniciou o seu ministério, as multidões ficaram pasmadas: “Tão desfigurado estava o seu aspecto, e a sua forma não parecia a de um homem” Is 52:14. Mas Jesus prosperou, elevou-se, foi exaltado e posto nas alturas. Ao findar o seu ministério, silenciou os reis.
A QUESTÃO DOS CABELOS NA ANTIGUIDADE
O
costume dos nazarenos e outros povos no uso de cabelos compridos
continuou após anos da desencarnação de Jesus, não se alterando. Os
asiáticos, os africanos e os povos bárbaros continuaram a ter cabelos
compridos. Diferentes desses, os gregos, menos os lacedemônios
(espartanos), assim como os romanos, usavam cabelos curtos. Em tempos de
luto, era permitido aos romanos deixar barba e cabelo, como o fizeram
Otávio Augusto e Marco Antônio após a morte de Júlio César.
Conforme registra Suetônio, em Vida de Caio Calígula,
os reis bárbaros, ao contrário dos romanos, usavam barba e cabelos
compridos. Mas em sinal de luto raspavam a barba, e de suas esposas
cortavam os cabelos. Suetônio diz que quando Calígula, ao completar 21
anos, recebeu de Tibério a toga cândida, ele raspou completamente a
barba, dignando-se a assumir funções importantes no Império; em seguida,
no ano de 38, após a morte de Drusila, sentindo-se incapaz de resistir a
tanta dor, deixou novamente crescer a barba e os cabelos, em sinal de
luto. Dentre as suas perversidades, quando nas ruas de Roma encontrava
jovens bem penteados, Calígula mandava desfigurá-los, raspando-lhes a
cabeça; Suetônio informa que após a vitória sobre os germanos e gauleses
Calígula escolheu os prisioneiros mais fortes e fê-los entrar em Roma
de cabelos compridos, tingidos de vermelho, para tornar maior o seu
triunfo, pois os ruivos de cabelos longos eram os bárbaros mais difíceis
de vencer. Os cabelos compridos eram sinal de ignorância para os povos
de cidades cultas e prósperas.
No século IX, segundo São Cirilo,
religioso responsável pela expansão do Cristianismo ortodoxo no leste
europeu, a interpretação do capítulo seis de Números,
referente aos nazireus, estendia-se também aos nazarenos, chamados
então de “nazareus” (moradores de Nazaré, como Jesus). Os cabelos
compridos eram usados por ambos. Dentre os nazarenos, usar cabelos
compridos e cortá-los após o sacerdócio, ofertando-os a Deus, era um
costume que vinha desde as raízes hebraicas no Egito.
Na Grécia,
Plutarco afirma que Teseu, quando saiu da infância, consagrou a Apolo
os seus primeiros cabelos. Em Roma, não há dúvida de que tal prática era
um ritual gentílico, dedicado aos deuses romanos. Em Vida de Nero,
Suetônio narra que quando esse imperador fez pela primeira vez a barba,
fechou-a num estojo ornado de pérolas preciosas e em meio aos aprestos
para sacrifício ofertou-a a Júpiter Capitolino.
Valério Marcial,
por sua vez, fala que, após a morte de Nero, quando o imperador
Vespasiano ofertou aos deuses os cabelos de seu filho Domiciano, Umberto
colocou-os num vaso de ouro, expressando-se num dístico: Accipe laudatos juvenis Pliaebeie crines / Quos Ubi Caesarius donat habere puer. [Aceite estes jovens cabelos plebeus / aqueles a quem César oferta para manter o filho].
Em
suma, nos primeiros anos do Cristianismo, seja em Roma ou na Grécia,
cidades mais prósperas e cultas do mundo antigo, era indecoroso ao homem
usar barba ou cabelos compridos: a barba era raspada a navalha,
deixando a face limpa; os cabelos, cortados a tesoura, curtos e raros,
deixando a testa alta e a cabeça desguarnecida.
No início do
Cristianismo, não querendo correr o risco de uma reprovação social por
algo que considerava dispensável, e para manter a ordem nas primeiras
assembleias cristãs, Paulo sugeriu às igrejas o uso de cabelos curtos,
tanto aos padres quanto aos homens cristãos. E registrou isso em Éfeso,
em sua Primeira Carta aos Coríntios,
por volta do ano 59 da Era Cristã, quase no fim de sua missão. A cidade
de Corinto ficava no sul da Grécia, era culta, populosa e muito imoral.
Paulo sabia que seria contestado, quando registrou: “Se, no entanto, alguém quiser contestar”, pois Jesus usava cabelos compridos, conforme mostra a Epístola Lentuli; e de fato o foi.
Cerca
de meio século depois, não eram poucos os padres que ainda usavam
cabelos compridos, tomando Cristo como espelho. Então o Papa Anacleto
(100 a 112), não obstante a obscuridade de sua história sabe-se que
ordenou 25 sacerdotes, mas impondo a eles o uso de cabelos curtos. E
meio século depois de Anacleto o Papa Aniceto (155 a 166) expediu um
decreto oficial proibindo aos padres o uso de cabelos compridos, dando
como fundamento I Coríntios 11,14-16.
O costume de Jesus e a Epístola Lentuli
nada tinham com esses interesses da Igreja iniciante, a qual precisava
dar aos padres uma feição máscula, culta e respeitável nas cidades
prósperas do Império Romano, para o Cristianismo nascente se fazer
respeitado, digno de crédito e tornar-se religião lícita, contemplado,
assim, pelas leis romanas.
AS ESCRITURAS CANÔNICAS
Sabe-se
que a literatura acerca dos primeiros cristãos iniciou-se com os
registros de Pilatos, quanto este informou Roma sobre Jesus, dando conta
das novidades ocorridas na Palestina, conforme registra Eusébio de
Cesareia, História eclesiástica L 2,2; L 9,5.
Essa
literatura inicial avançou com outros escritos, numa quantidade enorme
de livros. Em meio a tantos, por certo não teria sido fácil aos teólogos
evangelistas harmonizar os quatro Evangelhos, dando a cada um deles texto específico e falando tudo sobre Jesus, bem como harmonizar os quatro entre si.
Como
autores do NT, primeiro vieram os apóstolos e seus seguidores da hora
inicial, cujos textos seriam consolidados depois, pelos evangelistas
anônimos da Igreja. A instituição Igreja, quando já formada,
preocupou-se em alijar das Escrituras os textos de autores gnósticos.
Afastou também os autores que não estavam ligados ao Cristianismo desde o
início. Uma condição importante era o texto ter sido usado e aceito nas
primeiras comunidades cristãs. Com tais critérios, textos como a Epístola Lentuli,
produzida por um senador romano a serviço de Tibério, e vários outros
com caracteres que não passaram pelo crivo da Igreja, ficaram fora do
cânone.
Dos 27 livros do Novo Testamento, tidos como inspirados e perfeitos pela Igreja, temos os quatro Evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas e João), os Atos dos Apóstolos (Lucas), as 13 Epístolas de Paulo, a Epístola aos Hebreus (de autor incerto, escrita depois de Paulo e atribuída a ele), a Epístola de Tiago (bispo de Jerusalém e irmão de Jesus – Mc 6:3; Gl 1:19; Mt 13:55), as duas Epístolas de Pedro, as três Epístolas de João e a única Epístola de Judas (possível irmão de Jesus – Mc 6:3; Mt 13:55), terminando no Apocalipse de João (o livro de maior gnose de toda a literatura religiosa em todos os tempos).
É
preciso notar que a autoria dos livros do NT acabou ficando para os
apóstolos e para alguns de seus companheiros iniciais, nada fora deles. A
inspiração concentrou-se nos cristãos de primeira hora; depois, coube
aos evangelistas anônimos da Igreja o trabalho de censura, harmonia e
redação esmerada.
Se, em seu tempo, o senador Públio Lentulus tivesse ouvido as palavras do Cristo, as que ele registrou em Há 2000 anos...: “Encontrarás
hoje um ponto de referência para regeneração de toda a tua vida. Porém,
está no teu querer o aproveitá-lo agora ou daqui alguns milênios...”; talvez, naquela hora, ele fosse escolhido para tarefas especiais. Então, a Epístola Lentuli
e talvez outros escritos de sua lavra evangélica pudessem fazer parte
daqueles que seriam apreciados pela futura Igreja, com vistas à formação
do cânone oficial.
A indicação mais sugestiva é de que o apócrifo, Epístola Lentuli, a exemplo das primeiras Escrituras canônicas,
fora escrito na Antiguidade, nos tempos de Jesus. O senador Públio
Lentulus, quando de sua estada na Palestina, conforme nos mostra a
psicografia Xavier e corrobora o apócrifo, foi o seu autor. Temos a Epístola Lentuli
como legítimo documento da época, não incluído no cânone bíblico como
tantos outros; e, como estes, recebera da Igreja a classificação de
“apócrifo”. A carta atesta alguns aspectos da personalidade e da
fisionomia do Cristo, além de dar substância à existência do senador
Públio Lentulus nos tempos de Jesus.
Pedro de Campos é administrador, ufólogo, espírita pesquisador e autor de "Lentulus – Encarnações de Emmanuel"
[Lúmen Editorial, 2010], livro que fundamenta este texto.
[Lúmen Editorial, 2010], livro que fundamenta este texto.
ORIGINAIS DA EPÍSTOLA LENTULI
EM LATIM
– Lentulus Hierosolymitanorum Praeses S. P. Q. Romano: Adparuit nostris
temporibus et adhuc est homo magnae virtutis nominatus Christus Iesus,
qui dicitur a gentibus propheta veritatis, quem eius discipuli vocant
filium dei, suscitans mortuos et sanans languores. Homo quidem staturae
procerae, spectabilis, vultum habens venerabilem, quem intuentes possunt
et diligere et formidare; capillos vero circinos et crispos aliquantum
coeruliores et fulgentiores ab humeris volitantes; discrimen habens in
medio capitis iuxta morem Nazarenorum; frontem planam et serenissimam,
cum facie sine ruga ac macula aliqua, quam rubor moderatus venustat;
nasi et oris nulla prorsus est reprehensio; barbam habens copiosam et
rubram, capillorum colore, non longam sed bifurcatam; oculis variis et
claris exsistentibus. in increpatione terribilis, in admonitione
placidus ac amabilis, hilaris, servata gravitate, qui nunquam visus est
ridere, flere autem saepe. Sic in statura corporis propagatus, manus
habens et membra visu delectabilia; in eloquio gravis, rarus et
modestus, speciosus inter filios hominum. Valete.
-------------------------
EM PORTUGUÊS
– Lentulus, legado em Jerusalém, ao Senado e ao povo romano: Nestes
tempos apareceu e ainda se encontra entre nós um homem de grande
virtude, que se chama Jesus Cristo, o qual é tido pelo povo como profeta
da verdade; seus discípulos o chamam de filho de Deus, pois ele
ressuscita os mortos e cura os doentes. É um homem notável, de alta
estatura e aspecto venerando, que pode inspirar a quem o olha tanto o
amor como a temeridade. Seus cabelos são de um tom cobre-acastanhado,
levemente ondulados até à altura das orelhas, sendo, a partir daí, mais
escuros, encrespados e brilhantes até à altura dos ombros; usa-os
repartidos ao meio, ao estilo dos nazarenos. Seu rosto é bem conformado e
de aspecto sereno, não tem rugas nem cicatrizes na face, a qual um
rubor moderado torna ainda mais bela, sem nenhuma imperfeição no nariz
nem na boca. Tem a barba abundante e avermelhada, quase da cor dos
cabelos, não longa, mas bifurcada na altura do queixo. Sua expressão é
simples e natural, e seus olhos são azulados e brilhantes. Sua
expressão, quando reprova, é severa; quando aconselha, se faz serena e
amável, até mesmo quase alegre, mas sem perder a sua dignidade, já que
ninguém jamais o viu rir, embora já o tenham visto chorar por vezes. Seu
talhe corporal é esbelto, bonito de ver, com mãos e braços
proporcionais; fala de modo grave e eloquente, mas é reservado e
modesto; seu modo simples de ser pode ser comparado ao dos demais
homens. Passai bem.
.................................................
EPÍSTOLA LENTULI EM LATIM:
http://www.textexcavation.com/jesus.html"
http://www.textexcavation.com/jesus.html maio/2011.
EPÍSTOLA LENTULI ILUSTRADA:
Manuscrito em latim com retrato falado de Cristo. Lyons, Mathias Huss,
1499.
Hospedagem virtual em Universitätsbibliografie der Katholischen
Universität Eichstätt-Ingolstad, Baviera, Alemanha em maio/2011:
http://bvbm1.bib-bvb.de/webclient/DeliveryManager?pid=1428873&custom_att_2=simple_viewer" http://bvbm1.bib-bvb.de/webclient/DeliveryManager?pid=1428873&custom_att_2=simple_viewer"
http://bvbm1.bib-bvb.de/webclient/DeliveryManager?pid=1428873&custom_att_2=simple_viewer.
EPÍSTOLA LENTULI - Parte 3/3
(Tese histórica e paradeiro de seu original)
A psicografia de Chico Xavier veio esclarecer e alterar por completo o entendimento que se tinha sobre o senador Públio Lentulus e seu conhecido apócrifo narrando Jesus. A carta de Lentulus foi documento do estado romano, sofreu interpolação copista e seria queimada na época de Diocleciano, mas sua cópia serviria aos pintores e artistas sacros na execução das obras de arte. Esta tese histórica aqui editada é defendida por Pedro de Campos na terceira parte de sua refinada pesquisa.
Após a morte de seus fundadores, as primeiras comunidades cristãs sentiram necessidade de ter a verdadeira mensagem do Cristo para configuração da vida cotidiana dentro de uma fé inequívoca. Tal procedimento houvera apenas iniciado no tempo dos apóstolos, quando as escrituras iniciais foram dadas a público em forma de epístolas, testemunhos pessoais daqueles que andaram com o Cristo e foram orientados por ele sobre como desempenhar sua missão (Mc 16,15).
Conforme mostra o livro Lentulus – encarnações de Emmanuel – inquirição histórica (Lúmen Editorial, 2010), no silêncio das igrejas primitivas o Novo Testamento (NT) foi aos poucos revelado, em harmonia com os textos judaicos veterotestamentários. Contudo, em paralelo, causando certa confusão entre os crentes, surgiram numerosos escritos de autores em parte desconhecidos dos cristãos ou, então, apresentados com o nome de um dos doze apóstolos ou um dos setenta e dois discípulos que “estariam em missão do Cristo” (Lc 9,1-10;10,1-12).
Não obstante o relativo mérito de alguns textos primitivos, algo em seu conteúdo não recomendava a acolhida como escritura revelada. O filtro inaugural nascera dentro das primeiras comunidades cristãs, as quais se encarregaram de afastar aquelas que não lhes pareciam inspiradas. Surgiram então os primeiros escritos que mais tarde seriam chamados de “apócrifos”.
ERA UM DOCUMENTO DO ESTADO
O critério da origem apostólica para autenticar uma escritura foi introduzido na época inicial do Cristianismo, mostrando extensa literatura de autenticidade duvidosa, que não provinha dos apóstolos nem dos discípulos. Os escritos dos pais da Igreja, vindos em seguida, embora cheios de mérito, não fizeram parte do NT; esses patriarcas preferiram dedicar-se à organização das igrejas, ao trabalho pastoral e à vigilância das escrituras adotadas, mas suas obras foram capazes de subsidiar com mérito as revelações neotestamentárias. O que não pertencera ao rol dos registros de primeira hora não haveria de ser acolhido depois, quando os evangelistas oficiais da Igreja sacramentaram o NT.
É preciso destacar que exceto para a Igreja Ortodoxa, escritura apócrifa não é sinônimo de falsa ou de mentirosa, mas sim que não fora autenticada segundo as regras canônicas adotadas pela Igreja, as quais não permitiam dar acolhida ao texto. De modo geral, o apócrifo revela alguma tendência que o afasta da sublimidade, caracterizando-se como não inspirado. O texto pode denotar imperfeições de diversas categorias, desde uma ligeira impregnação fantasiosa até um extremo exagero imaginário, não raro um saber contrário à razão, uma incoerência ou, simplesmente, que seu autor não era apóstolo nem discípulo de primeira hora.
A chamada Epístola Lentuli, da qual nos ocupamos aqui, não se encaixa em nenhuma categoria antes mencionada de apócrifo, tampouco de escritura gnóstica. A carta fora escrita por um senador do Império, Públio Lentulus, um homem pagão, contrário aos cristãos e aos gnósticos. Não era um texto para ser lido, estudado e reproduzido pelos crentes nas igrejas primitivas, objeto de todo apócrifo, mas sim um documento do Estado, um exemplar único, raro, para conhecimento da autoridade constituída e tomada de eventual providência, devendo, depois, como documento oficial, ser arquivado pela administração imperial.
De fato, a Epístola Lentuli fora discutida no Senado ainda no primeiro século, conforme nos mostra o livro Há 2000 anos..., da psicografia de Chico Xavier. E o grande Tertuliano, advogado em Roma no século seguinte, confirma: “Tibério recebeu informações da Palestina sobre os acontecimentos que demonstravam de modo claro a divindade de Cristo e levou, adequadamente, o assunto ao Senado”, Apologética (V, 1-4).
Nos séculos seguintes, circulavam apenas rumores da existência da carta e seu conteúdo, nada além, como seria natural. Sendo um documento oficial, ela não estava de posse das igrejas. Sua subtração dos arquivos do Estado seria um cometimento ilegal, passível de punição pelas leis romanas. Caso a tivesse, a comunidade cristã ficaria vulnerável.
As comunidades cristãs pós-apostólicas precisavam refletir sobre as verdades do Cristo, sem o risco de enganos e controvérsias que pudessem gerar cisma entre os crentes ou represália do governo. Importava conhecer a verdadeira revelação do Cristo, não a “verdade” dos homens. Para garantir isso, houve extremo empenho dos pais da Igreja. Essa teria sido a razão de a Epístola Lentuli ter ficado longo tempo arquivada, sendo ignorada até o governo de Diocleciano, quando teria sido achada nos arquivos imperiais e reproduzida.
SOFREU INTERPOLAÇÃO COPISTA
Orígenes foi um dos mais importantes pais da Igreja. Nasceu em Alexandria, no ano 185, e desencarnou em 254. Foi duramente torturado numa prisão de Tiro, Fenícia (hoje Sur – Líbano), durante as perseguições do imperador Décio. São Jerônimo inventariou 800 escritos de Orígenes, mas informa que Eusébio de Cesareia teria elencado cerca de dois mil trabalhos.
Seu famoso livro, Contra Celso, foi escrito em torno do ano 248, sendo vigorosa resposta de Orígenes à obra de Celso, O discurso verdadeiro (170-185), que não chegou até nós, no qual o filósofo pagão faz duras críticas ao Cristianismo, a Jesus e a Maria.
Orígenes escreveu seu livro 60 anos depois de Celso, em meados do século III, e fundamentou seus argumentos na obra do antigo escritor judeu Flávio Josefo (37-103), na obra Antiguidades judaicas, que fora publicada no final do primeiro século, no ano 94.
Josefo, por sua vez, para escrever as Antiguidades teve acesso aos documentos do Estado, em especial ao arquivo de Tibério, do qual tirara informações valiosas sobre João Batista, Jesus, Tiago e Mateus, além de constatar a existência dos Atos de Pilatos, maço de escrituras da qual faria parte a Epístola Lentuli. Em particular, o apócrifo Evangelho de Nicodemos é notado nas entrelinhas da obra de Josefo, podendo ser interpretado como oriundo dos tempos de Tibério. Por certo, não foram poucos os registros enviados a Roma da administração de Pilatos que ficaram nos arquivos do Estado e tiveram grande valor para o Cristianismo.
A exatidão dos escritos de Flávio Josefo foi confirmada em época recente, com as descobertas dos pergaminhos de Qumran e Massada, em Israel. Em particular, o Testimonium Flavianum (Testemunho de Flávio), como hoje conhecido, menciona a existência de Jesus, mas, de modo intrigante, suspeita-se que os copistas fizeram “interpolação” no texto original de Josefo, alterando os dizeres de Antiguidades. Hoje, o escrito está assim: "Havia neste tempo Jesus, um homem sábio [se é lícito considerá-lo apenas um homem, com tantos atos admiráveis ensinando àqueles que amavam a inspiração na verdade]. Foi seguido não só pelos judeus, mas também pelos gentios. [Era o Cristo]. E quando o principal de nossa nação o acusou diante de Pilatos, eles o crucificaram. Os que o amaram na vida não o deixaram nem mesmo após sua morte. [Ele lhes apareceu vivo novamente no terceiro dia, como os santos profetas o tinham predito e que faria ele outras mil coisas maravilhosas]. A sociedade dos cristãos que vemos ainda hoje tirou dele seu nome" (Antiguidades judaicas, L.18, cap.4, §772).
Alguns críticos consideram como “interpolação” o que colocamos no texto em itálico; outros, mais severos e mordazes, como Lentsman, autor de A origem do Cristianismo (Lisboa, s.d.), e o italiano Emilio Bossi, de Gesù Cristo non è mai esistito (Milano, 2010), estão de acordo que o texto inteiro não existia. Em síntese, argumentam que tal parágrafo, em meio a outros, com seu assunto diferente, fica solto e a esmo na redação, sem o necessário encadeamento que requer uma narrativa.
Assim, com desprezo, Lentsman qualifica os copistas da Igreja como “tão ingênuos quanto piedosos” (A origem..., cap.2); enquanto Bossi diz que “as palavras atribuídas a Josefo são as de um bom cristão”, ressaltando que Josefo “jamais as escreveria, pois um judeu não falaria como cristão” (Gesù..., cap.2).
Não obstante a franca acusação desses autores, as suspeitas não foram sem motivo. Na verdade, parte das interpolações se transformou em certeza. Isso porque Orígenes, quando escrevera sua obra (Contra Celso), fundamentando-se em Josefo (Antiguidades), não encontrou nela o Testimonium Flavianum (o parágrafo 772, antes mostrado). Orígenes falara de João Batista, que está em Antiguidades (L.18, cap.7, §781) e de Tiago o Justo, irmão de Jesus (L.20, cap.8, §856), mas não achou lá o tal Testimonium e, tampouco, a expressão “Ele era o Cristo”.
Orígenes não viu o Testimonium em Antiguidades porque, quando a lera, para fazer a sua obra, o escrito ali não estava. Em seu livro, ele ressalta que Josefo (militar judeu que combatera Vespasiano) “não acreditava que Jesus era o Cristo” (Contra Celso, L.1, §47). E sendo Josefo um judeu convicto, Jesus para ele não era o Messias; um judeu conservador jamais afirmaria: “Ele era o Cristo”; mas usaria outro termo, como, por exemplo, “chamado Cristo”, que, de fato, Orígenes toma tal expressão e a usa por duas vezes ao mencionar Josefo (Contra Celso, L.2,§13).
Isso deu margem para se suspeitar que os copistas houvessem adulterado o livro Antiguidades, “interpolando” o Testimonium Flavianum para facilitar a aceitação pública de que “Jesus era o Cristo”. Assim, poderiam colocar todo prestígio do historiador Josefo (um judeu) a favor da Igreja. Contudo, seria preciso transformar a “suspeita” de interpolação em algo mais palpável, que pudesse dar realidade aos indícios. Então, examinando outros autores cristãos, a consistência foi achada na obra de Eusébio de Cesareia.
Eusébio, por sua vez, foi um patriarca da Igreja dos mais respeitados, viveu entre os anos 260 a 340, sendo amigo do famoso imperador Constantino Magno. Escreveu inúmeras obras, cuja mais importante foi História eclesiástica, composta de dez livros. Começou a escrevê-la no ano 312, relatando as ocorrências eclesiásticas desde o início do Cristianismo até o ano 324, quando Constantino governou absoluto e toda perseguição foi abolida ao largo do Império.
Para surpresa geral, cerca de 70 anos após a obra de Orígenes, Eusébio usou o livro de Josefo, vendo nele aquilo que Orígenes não vira – o Testimonium Flavianum e a frase “Ele era o Cristo”. Ambos estavam ali, nas Antiguidades, sendo transcritos por Eusébio, em sua obra História... (L.1, cap.11, §8).
Os registros de Eusébio denotam que em algum ano, entre as duas publicações, no período de 248 (quando saiu Contra Celso, de Orígenes) a 312 (publicação dos primeiros volumes da História eclesiástica, de Eusébio), os copistas haviam feito “interpolação”, alterando os originais de Antiguidades. Com tal evidência, seria preciso verificar agora o “quando” e o “motivo” da interpolação.
O “quando” estava entre os anos 275 e 303, desde o governo de Tácito até o final do de Diocleciano, quando este decidiu repelir os cristãos. Num período aproximado de 30 anos, houve paz para a Cristandade e a Igreja desenvolveu intensa atuação política para obter credibilidade, fazer adeptos e persuadir o governo a aceitá-la. Verificou-se então um tempo fértil de culto regular, de construções de igrejas e de fábricas copistas funcionando como nunca na produção de obras literárias e escritos cristãos. O objetivo era converter judeus e pagãos, fortalecer a nova religião e torná-la lícita no Império – razão das interpolações copistas no texto de Josefo e, também, no do senador romano Públio Lentulus, autor da Epístola Lentuli.
Sobre essa Epístola, a psicografia de Chico Xavier (Há 2000 anos..., FEB, 1939), veio esclarecer e alterar por completo o entendimento que se tinha do senador Lentulus e de sua narrativa sobre Jesus. Sabe-se hoje que a famosa carta sofreu interpolação copista. Não vamos aqui reproduzi-la na íntegra, já o fizemos num texto anterior, mas somos impelidos a mostrar algumas partes que foram mexidas.
A Enciclopédia Católica Original, num artigo de Anthony Maas, publicado em 1910, traz uma das versões da carta e, no seu preâmbulo, dá que Lentulus fora “governador de Jerusalém”. Ora, quem lê a psicografia Xavier observa que Lentulus não fora “governador”, nem “procurador”, “presidente”, “prefeito” ou “procônsul” como aparece em outras versões da carta, mais sim um “legado do imperador”, um jovem magistrado romano, ao nível de questor, fazendo ali trabalho jurídico, como mostra o livro Lentulus (p.285-286). Que a interpolação deu ao senador um cargo errado (o de “governador”) isso é notório!
Não vamos nos deter aqui no corpo da carta, do qual já falamos longamente em outro trabalho, mas temos que registrar o engano copista em seu final: “É o mais belo entre os filhos dos homens” (Speciofus forma pre filiis hominum). Ora, isso se trata de cópia integral do Salmo 45 (44), versículo 3, que foi interpolado na Epístola. Por certo, o copista quis mostrar que a narrativa estava conforme a profecia sobre o Messias, da qual ainda iremos falar. Quem lê a psicografia Xavier nota que Lentulus era um senador romano totalmente avesso à religião judaica, nada sabia dos Salmos, portanto, não poderia tê-lo colocado na carta.
As mexidas do copista são notórias. Se ontem elas foram boas e se serviram aos propósitos da época, o mesmo não se pode dizer hoje, pois causam grandes transtornos ao entendimento. No lance seguinte vamos entender melhor os acontecimentos que favoreceram essas interpolações e, também, entrever o que teria ocorrido com a Epístola Lentuli naquele período de grave martírio para os cristãos.
QUEIMA DA EPÍSTOLA ORIGINAL
Diocleciano imperou entre os anos 284 e 305. Era tio do papa italiano Caio de Dalmácia, que pontificou de 283 a 296. Esse papa entendeu que para ser bispo era necessário ter um currículo. O bispo não podia ser ordenado sem antes passar pelos graus menores, obtidos com a prática e o estudo constante. O postulante devia ter sido ostiário (guarda de porta e de utensílios de valor), leitor (das sagradas escrituras), acólito (ajudante de missa), subdiácono, diácono (clérigo menor), sacerdote (padre) e exorcista (presbítero a quem cabia doutrinar e fazer a retirada de espírito obsessor). Acredita-se que a proximidade familiar com o papa deixava o imperador mais confiante.
No terceiro quartel do século III, os cristãos aproveitaram para fazer intenso proselitismo, convertendo para sua doutrina milhares de neófitos. Entraram em todos os setores da vida social, da administração pública e do exército. As publicações religiosas foram inúmeras, em benefício das coisas do Cristo. Nesse tempo, o culto dominical e seus locais de celebração eram conhecidos de todos. Os bispos podiam apontar para as suas igrejas sem o menor receio, apesar de o culto cristão não estar liberado e de a religião ser ainda ilícita perante o regime vigente.
A Epístola Lentuli, por sua vez, como documento do Estado era exemplar único. O doutor Theodor Gabler, em Die Opuscula Academica (Berlage, 1831, p.638-692), assim como outros estudiosos, estimou que, naquele tempo, a carta fora achada nos arquivos oficiais e traduzida. Algumas cópias teriam sido tiradas do documento original (com “interpolações” copistas semelhantes às do Testimonium Flavianum), no intuito de elevar o prestígio do senador Públio Lentulus e mostrar quem fora o Cristo, no dizer daquele magistrado que na época estava em Jerusalém. A Epístola seria então um instrumento de persuasão da Igreja que visava sensibilizar os homens de governo e o Senado para concederem ao Cristianismo o diploma de “religião lícita”.
Então, sobreveio a morte do papa Caio de Dalmácia, sobrinho do imperador, cessando sua influência. Ao mesmo tempo, Diocleciano começou a sentir-se inseguro diante de certas ocorrências no exército envolvendo militares cristãos. Estes, envoltos na nova fé, passaram a ter dificuldade em conciliar a religião e os combates de guerra, os quais eram vitais para os objetivos do exército, enfraquecendo as fileiras de Galério, o braço direito de Diocleciano.
Avesso ao Cristianismo e sob pressão dos chefes militares e de intelectuais neoplatônicos, ambos advogando que para o Império voltar a ser forte seria preciso afastar tudo o que não fosse da tradição pagã, o imperador emanou uma série de éditos contra os cristãos. Seu objetivo era solucionar o problema do exército e reforçar a segurança do Império. A princípio, não havia castigo de morte, mas as coisas foram tomando um rumo diferente do imaginado pelo imperador.
Os militares cristãos até então afastados das solenidades aos deuses pagãos, realizadas no exército, foram intimados a participar delas e a sacrificar aos deuses. Houve extremo desagrado ao largo do Império. Quem se recusou, ou desobedeceu, foi expulso do exército. Então a agitação nas cidades se tornou maior, ninguém queria um retrocesso nas liberdades que julgavam adquiridas. Mas a lei vigente não dava guarida aos novos costumes, os quais se tornaram ilegais, a favor dos chefes militares que abraçavam as ideias pagãs.
Mesmo os cristãos que aceitaram o édito e, num ato de apostasia (para satisfazer César), sacrificaram aos deuses visando manter os seus cargos públicos ou permanecer engajados no exército, tiveram frustradas suas aspirações – o “sinal da cruz”, feito pelo público, passou a ser grande empecilho. Segundo Lactâncio, preceptor de Crispo, filho de Constantino, autor do livro Sobre a morte dos perseguidores, diz no capítulo 10 que os arúspices – adivinhos imperiais – alegaram que o sinal da cruz frustrava os vaticínios e nada podia ser predito na cerimônia. Então as coisas ganharam novo rumo – havia incompatibilidade religiosa e o governo se viu compelido a adotar outras medidas contra os cristãos.
Nos pontos mais distantes do Império, onde a Igreja não havia chegado, o povo era pagão. Mas na Espanha, nas Gálias, na Grécia e na Itália a influência cristã estava num crescimento formidável, embora os cristãos fossem ainda minoria. Puxando o crescimento estava a Ásia Menor, a região de Bizâncio, a costa do Egito, da Líbia e de Cartago – nesses locais, os cristãos já atingiam metade da população, com grande influência nos exércitos e nos cargos públicos do governo. Contudo, sendo a maioria pagã ao largo do Império, o governo se determinou a repelir o que fosse cristão.
Então mandou preparar um édito imperial, em 23 de fevereiro de 303, dia de festa da Terminália (homenagem ao deus Terminus, protetor das fronteiras e patrono das famílias), no qual se mandava demolir as igrejas, queimar as escrituras e impedir a celebração do culto – o dominicum (História eclesiástica L.8, cap.2, §4). No édito, foi condenada à fogueira toda literatura cristã, quer em latim, em grego ou na língua hebraica. Todo cristão em serviço público ou em atividade no exército estava obrigado a renunciar sua crença e a desdizê-la publicamente.
No cumprimento do édito, os soldados foram incumbidos de saquear as igrejas e as bibliotecas, retirar tudo o que fosse religioso e toda literatura, queimando tudo em praça pública. Quem se opusesse, ou oferecesse resistência, perdia a liberdade e os direitos civis de cidadão romano. Então as prisões construídas para os assassinos ficaram abarrotadas de bispos, padres, diáconos, leitores e exorcistas, não restando lugar para os verdadeiros criminosos (HE, L.8, cap.6, §9).
O rigor das medidas foi acentuado ainda mais com a promulgação de três editos sucessivos, dando início a um período de dez anos de perseguições até o final de 312, com flagelos, martírios e suplícios horrorosos. Nenhuma perseguição anterior deixara tantas narrativas de sofrimento quanto à de Diocleciano. Enquanto a maioria dos cristãos raciocinou a fé, seguiu as leis e “deu a César o que é de César”, sem renunciar à vida, outros, contudo, partiram da premissa de que o amor ao Cristo devia sobrepor-se, não importando o custo, dando-se ao martírio. Então pereceram: São Sebastião, tribuno de uma coorte pretoriana, varado de setas; Santa Inês, condenada ao lupanar após sua recusa de se casar com um pagão, escondeu ali sua nudez com a longa cabeleira e, mais tarde, foi decapitada; o papa Marcelino, em Roma; Santa Lúcia, em Nápoles, e milhares de outros martirizados.
O jovem bispo Irineu, em Sírmio, no Danúbio, casado e com filho pequeno (naquele tempo o casamento de padre não era proibido pela Igreja), quando no cavalete de tortura sua esposa e seus pais gritavam para ele renunciar, em benefício da vida que tinha pela frente. Mas o jovem se manteve firme. Quando o governador deu o ultimato: “Sacrifica aos deuses, sacrifica!”, porque assim poderia soltá-lo, ele respondeu: “Sacrificar? Mas estou sacrificando a mim mesmo, pelo meu Deus, a quem devo tudo!”
Em Antioquia, os suplícios foram horríveis – os mártires foram assados sobre grelhas. As penas graves, que não impunham a morte, mandavam arrancar um olho, mutilar um dos pés e jogá-los no fogo. As penas consideradas brandas prescreviam trabalhos forçados nas minas de metal de cada província (HE, L.8, cap.12, §10). Em Roma, pouco antes, o bispo africano Félix já houvera sentenciado: “Prefiro ser queimado vivo a deixar queimar as divinas escrituras”. Enquanto Santa Irene, vendo duas irmãs martirizadas, declarou: “Preferimos ser queimadas vivas e sofrer tudo que quiserem, a entregar os nossos livros”. Fizeram-se prisões e castigos intermináveis, com bibliotecas inteiras destruídas.
Lactâncio conta em seus registros (Sobre..., cap.12) que ao amanhecer do primeiro dia, quando a luz ainda tênue se apresentou no céu, o prefeito para assuntos da Igreja, acompanhado dos chefes, dos tribunos militares e dos funcionários do fisco, juntos arrancaram as portas da igreja e foram buscar as imagens; depois, então, pegaram as escrituras e as queimam; a todos os perseguidores foi permitido fazer despojos, pilhagens, agitação e correrias. Ao longe, Diocleciano e seus conselheiros discutiam se não seria preferível incendiar a igreja. Mas consideraram que um incêndio de grandes proporções podia alastrar-se e incendiar partes da cidade, pois a igreja estava rodeada por grandes e numerosos edifícios. Os guardas pretorianos, formando esquadrão, avançaram e destruíram tudo. Em poucas horas arrasaram o imponente templo até o nível do solo. A Igreja Romana e os arquivos pontifícios fumegaram sem cessar até não sobrar sequer um papiro.
Durante os anos de perseguição, os arquivos oficiais do Cristianismo sofreram perda irreparável – toda documentação de posse das igrejas foi destruída. Tem-se que seja essa a principal razão do pequeno número de escritos cristãos, anteriores ao século IV, hoje remanescente, segundo Curtis Giordano, autor de História de Roma (Vozes, 1983).
Em meio ao caos, o original da Epístola Lentuli e algumas de suas primeiras cópias por certo fumegaram. Tem-se que esse documento oficial do Estado ali fora perdido, embora não se descarte que uma das cópias antigas ainda possa ser achada em arquivo inexplorado. Ela não era como as demais escrituras nem como os registros apócrifos para espalhar a religião nascente, cujas cópias fartas circulavam nas igrejas, mas sim um documento único do governo, do qual os copistas, anos antes da queima, tiraram raríssimas cópias. Para a Igreja, a Epístola fora instrumento político num curto período, não era uma escritura para ser estudada nas comunidades cristãs. Esse o motivo de sua raridade e de não ser ela divulgada na Antiguidade como outras.
A carta de Lentulus foi reproduzida em poucas cópias e com imperfeições, traduzida do latim para o grego como todas as escrituras da Igreja antiga. Era um registro não religioso, usado como instrumento de persuasão, testemunho vivo de um senador romano relatando Jesus ao Senado. Suas cópias ficaram acessíveis por alguns anos antes do édito de 303 e, depois dele, foram guardadas na ilegalidade, assim como outras que escaparam da queima, até o ano 313, quando Constantino e Licínio assinaram o Édito da Tolerância, em Milão.
Em 324, quando Constantino superou seu oponente e tornou-se soberano no Império, o retrato falado de Jesus chegou aos artistas da pintura, que com as informações puderam pintar murais e telas artísticas, enriquecendo como nunca as artes sacras do Cristianismo, então religião lícita; mas, ainda assim, a Epístola ficaria confinada ao arquivo, relegada ao esquecimento por longo tempo.
Apenas na Idade Média, mais de um milênio depois, quando redescoberta nas antigas bibliotecas, seria classificada como literatura apócrifa de época tardia, dada sua condição de cópia imperfeita, que não mais permitia identificá-la como documento oficial do estado romano. Contudo, ainda assim, naquele tempo, muitos especialistas não puderam conhecê-la. E, ainda hoje, não é incomum observar-se a ausência dela nas listas de apócrifos.
Quanto a tal ausência, não há que se estranhar em demasia. Nicephorus, patriarca de Constantinopla (806 a 815), quando elaborou sua cronografia, intitulada Stichometery of Nicephorus, na qual mostra os livros canônicos desde Adão até o primeiro quartel do século IX, nela não colocou o Apocalipse de João. A surpresa foi enorme! Afinal, o Apocalipse era tido como livro dos mais antigos da Cristandade; então se cogitou que sua acolhida no cânone fora tardia. Constatou-se que, no segundo século, o Apocalipse ainda não era lido nas igrejas, havendo notícias de seu uso apenas no século V, em algumas igrejas da Palestina, durante as cerimônias da sexta-feira da Paixão.
Acredita-se que tal ausência fora devido ao conteúdo teológico díspar entre o Apocalipse e os Evangelhos Sinóticos; ou seja, ao que há de acontecer no “fim do mundo”, segundo seu autor, além de que a doutrina, para ambos, em nada se assemelha. Nos Sinóticos, não se observa castigo aos homens de Estado, mas sim o “Dai a César o que é de César”; no Apocalipse, ao contrário, vemos o ódio massacrar os detentores do poder, chamando-os de “Babilônia, a grande prostituta”. Do começo ao fim do Apocalipse, há vingança e destruição, diferente dos Evangelhos que ensinam “dar a outra face” e “reconciliar-se com os inimigos”. Com tais antagonismos, sem dúvida houve hesitação até o livro ser incluído no cânone. Por certo, a Epístola Lentuli teve tratamento semelhante em termos de ausência, acolhida e divulgação.
VÍNCULO MESSIÂNICO COM O SALTÉRIO
Os evangelistas oficiais da Igreja, com a missão de normalizar as escrituras e dar a elas redação esmerada, foram buscar no Antigo Testamento os pormenores do Messias. Jesus, em seus sermões, estava convicto de ser o Cristo, e os fundadores da Igreja precisavam sacramentá-lo. Os detalhes estavam nas Escrituras Sagradas. Seria preciso buscar ali os itens alusivos ao Messias, confirmá-los na pessoa de Jesus e, na redação dos Sinóticos, não dar margem a incoerência.
Mateus escreveu nitidamente para demonstrar que Jesus era o Messias anunciado pelos profetas. Marcos, instruído por Pedro, mostrou Jesus como o filho de Deus, confirmando as predições. Lucas, médico de profissão e amigo de Paulo, apresentou Jesus como médico do corpo e da alma, o Messias redentor do mundo. João, por sua vez, disse que Jesus dera sinais extraordinários, os quais não ficaram registrados em livro, e finalizou dizendo que Jesus era o Messias: “Estes sinais miraculosos foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo” (Jo 20,31). Nos Sinóticos, os evangelistas oficiais da Igreja tiveram a preocupação de harmonizar os quatro Evangelhos entre si, alinhavando tudo, inclusive os aspectos messiânicos, para não dar margem à dúvida sobre quem fora Jesus.
É preciso notar que na Antiguidade havia uma máxima: “À mulher de César não basta ser honesta, precisa também parecer honesta”. Então, registrar a aparência do Cristo e sua personalidade, como o fizera a Epístola Lentuli, um documento de César, poderia suscitar dúvida ao público, em razão da árida imagem profetizada por Isaías, embora o salmista profetizasse em seu canto a beleza das formas. Seria preciso a máxima cautela, pois havia risco de interpretação desconexa.
Isaías, quando inspirado, profetizou sobre o Messias: “Desde criança crescera diante dele mesmo, como um renovo, como raiz que brota de uma terra seca; não tinha beleza nem esplendor que pudesse atrair o olhar de outros, nem formosura capaz de deleitá-los” (Is 53,2); quando Jesus iniciou o seu ministério, as multidões ficaram pasmadas: “Tão desfigurado estava o seu aspecto, e a sua forma não parecia a de um homem” (Is 52,14).
Por outro lado, de modo aparentemente oposto, o cântico do Saltério anunciava: “És o mais belo dos filhos dos homens” Salmo 45 (44), 3; e completava, no versículo 7, “Teu trono é de Deus”. Não havia dúvida de que o salmista, em seu hino de enaltecimento, falava do Rei-messias, o Ungido que haveria de vir, o consagrado divino.
Embora se possa dizer que a verdade não pode estar em coisas que divergem, a coerência entre Isaías e o salmista pode perfeitamente existir, caso o primeiro estivesse falando de Jesus no “início” de seu ministério e o segundo, referindo-se a ele no final de sua missão. De fato, isso parece se confirmar na Epístola Lentuli, cujo testemunho fora dado próximo da Paixão de Cristo, no término de sua missão, relatando traços fisionômicos consoantes ao canto genérico do Saltério.
Convém lembrar que Isaías escrevera tais palavras sete séculos antes de Cristo, prevendo a figura do Messias desde criança e seu aspecto físico quando já homem, no início de sua missão. No começo de seu ministério, a expressão de Jesus estava marcada pela vida simples da aldeia. Qualquer alteração fisionômica, vinda depois, no curso de sua missão, poderia ser tomada como desconformidade aos escritos de Isaías. Contudo, se Jesus fosse descrito três anos depois, no final de seu ministério, quando seu aspecto inicial já houvera dado lugar a uma feição de sublimidade, próxima da referida no Salmo, tal fato seria difícil conciliar nos argumentos do cânone, que teriam de mostrá-lo sob dois aspectos. Afinal, ele viveu para que se cumprisse aquilo que fora anunciado sobre o Messias.
Assim, toda descrição do Cristo, na redação dos Sinóticos, por certo foi abolida pelos redatores oficiais, mesmo que oriunda dos apóstolos ou dos discípulos. Mas a Igreja não podia abolir as escrituras heréticas nem os documentos oficiais do governo, cujo domínio não era seu. Então tais escritos permaneceram e foram usados mais tarde.
A Epístola Lentuli era um texto oficial, escrito por um senador do Estado e, face às predições veterotestamentárias, ninguém da Igreja, então em seu início, podia corroborar com ele sobre a fisionomia de Jesus. Ninguém podia dar a ela referendo de validade, mesmo sabendo que o Cristo, no início de seu ministério, trazia o aspecto profetizado por Isaías e que, três anos depois, na plenitude de seu ministério, quando já próximo de sua Paixão, levava consigo os esplendores sublimes do Saltério, que coroavam de beleza e enalteciam a sua divina missão.
Embora os apóstolos e os discípulos tenham convivido com o Cristo durante anos, inclusive antes de seu ministério, os registros canônicos sequer dão uma linha sobre os seus traços fisionômicos, algo deveras incomum para quem com Ele convivera; mas compreensível, para quem observa as dificuldades em harmonizar os escritos neotestamentários com os dizeres de Jesus: “Era preciso que se cumprisse tudo o que está escrito sobre mim na lei de Moisés, nos profetas e nos Salmos” (Lc 24,44).
Sem dúvida, os evangelistas oficiais da Igreja ficaram impedidos de mostrá-la, para não haver risco, caso a fisionomia mostrasse um mínimo desacordo, de impactar sua coerência messiânica com os registros veterotestamentários. Mas a Epístola Lentuli não tinha tal preocupação, pois era um documento do Estado, não um apócrifo (como fizeram dela os copistas), e acabou servindo aos pintores e artistas sacros para execução de suas obras de arte, sendo, por intermédio delas, divulgada de modo indireto, inclusive na Antiguidade.
Pedro de Campos
Administrador, ufólogo, consultor da revista UFO,
espírita colaborador da revista Espiritismo & Ciência,
pesquisador de psicobiofísica, médium e autor de vários livros, dentre os quais o mais recente:
Lentulus – encarnações de Emmanuel – inquirição histórica [Lúmen Editorial, 2010].
Administrador, ufólogo, consultor da revista UFO,
espírita colaborador da revista Espiritismo & Ciência,
pesquisador de psicobiofísica, médium e autor de vários livros, dentre os quais o mais recente:
Lentulus – encarnações de Emmanuel – inquirição histórica [Lúmen Editorial, 2010].
CRISTO DE BARBA BIFURCADA – PORTA MARINA DE ÓSTIA
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Fonte da imagem: http://www.ostia-antica.org/regio3/7/7-8_1.jpg.
Fontes dos relatos:
<http://www.collezioni-f.it/ostia/ostia.html>. Acesso em maio 2011.
<http://www.ostia-antica.org/regio3/7/7-8.htm>. Acesso em maio 2011.
<http://culturamugellana.wordpress.com/2010/09/23/ancient-ostia-a-christian-crypt-iv-century-ad-with-an-image-of-christ-giving-a-blessing-has-been-found/>. Acesso em maio 2011.
CRISTO BARBADO – CATACUMBA DE COMMODILLA
Descrição:
Cristo Barbado com traços ainda rudes, cabelos compridos e repartidos
no meio, barba não muito longa e cabeça aureolada. Afresco do final do
século IV, catacumba de Commodilla, localizada na via das Sete Igrejas,
não distante da Via Osteniense, Roma, Itália. ______________
Fonte da imagem:
http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/8/8d/Christ_with_beard.jpg
Enviado
por Geraldo Lemos Neto | Vinha de Luz Editora | Pedro de Campos |
Revista Espiritismo & Ciência nº 91 | Dezembro, 2011 16/01/2012
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